Em "Um lugar luminoso para gente sombria", Mariana Enriquez convoca o sobrenatural em narrativas curtas habitadas pelo medo.
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A sombra sempre foi o lugar predileto dos livros de Mariana Enriquez, como bem o sabem os leitores de “A nossa parte da noite” e “As coisas que perdemos no fogo”, os dois livros da premiada escritora e jornalista argentina publicados em Portugal.
Não se trata, porém, de uma abordagem que siga os padrões habituais do género, muito propensos a estereótipos e a facilitismos de vária ordem. Mais do que infundir o medo no sentido tradicional do termo, o que os seus livros revelam é uma vontade de conhecer a fundo dimensões menos exploradas do ser humano, sobretudo a irresistível inclinação para o mal.
Nascidos durante a pandemia, os 12 contos incluídos em “Um lugar luminoso para gente sombria” trazem outras tantas aproximações a territórios que nos esforçamos muitas vezes por ignorar no dia a dia. Não por acaso, a autora situa a maioria destas narrativas em atmosferas de aparente calma, facilmente reconhecíveis por qualquer leitor, mas cuja tranquilidade é subitamente interrompida com manifestações de ordem sobrenatural ou similares.
O propósito de Enriquez é claro e pode ser sintetizado no título do marcante filme de John Carpenter “Eles vivem”. Ou seja, as designadas criaturas da noite estão mais próximas de nós do que gostaríamos de pensar.
Entre o gótico e o surreal, os contos de “Um lugar luminoso para gente sombria” devem grande parte da sua eficácia à contenção. Mais sugerido do que pronunciado, o medo, quase sempre manifestado como lugar de desconforto, vai-se insinuando lentamente na história, por muito inverosímil que pareça aos olhos de um leitor de índole cética.
É o que acontece quando lemos a história de uma adolescente que afirma ter relações com espíritos ou o drama que se apodera de uma mulher que vê uma pequena mancha no rosto a alastrar-se tão rapidamente ao ponto de desfigurá-la por completo.
Em todas estas abordagens, por muito distintas que sejam, encontramos uma vontade de questionamento que não exclui nenhuma zona da existência, nem mesmo as consideradas marginais.