Peça de Strindberg é a nova produção do Teatro S. João, no Porto, e está em cena até 14 de janeiro de 2024. Encenação é de Bruno Bravo.
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As velhas unidades de tempo, lugar e ação que dominaram o teatro desde a antiguidade clássica são estilhaçadas em “Um sonho”, peça de August Strindberg estreada em 1907.
Foi um salto radical do dramaturgo sueco, que pusera já em causa o motor histórico do drama – os conflitos interpessoais, a relação dialógica – em “O pai” (1887), que desloca toda a ação para o íntimo, para a visão subjetiva de um “inferno familiar”. “Um sonho” dinamita o que sobra da estrutura dramática e abre caminho para as vanguardas do séc. XX.
É este o material da nova produção do Teatro S. João, que confiou a encenação a Bruno Bravo. A peça está em cena até 14 de janeiro.
E se os meios técnicos do séc. XXI tornam um pouco mais viável a materialização de uma peça onde “tudo é possível e provável” – as didascálias pedem um castelo a crescer, o palco a dividir-se, um barco a navegar –, imaginamos as dificuldades da encenação há mais de 100 anos.
O que não terá mudado são as dificuldades de existir – e é isso que Agnes (Lisa Reis), filha de Indra, deus do céu no hinduísmo, vem testemunhar na sua passagem pela Terra. A entidade escuta e envolve-se com mais de 30 personagens que desenham um panorama da condição humana. Há desde o comum vidraceiro às figuras simbólicas que representam a filosofia, o direito, a medicina e a teologia. Com a dinâmica de um sonho, as personagens surgem e evaporam-se, trocam de identidade, habitam lugares incertos.
Inicialmente otimista, Agnes acredita que o amor tudo supera – mas a cadência de violências, sofrimentos e deceções que observa fazem-na concluir que a humanidade é uma pena. Todas as misérias desfilam, assim como as dúvidas sobre a base do conhecimento, da existência, das relações amorosas.
Até a luta de classes entra em pauta, mas sem maniqueísmos: no universo de Strindberg todos sofrem – do mineiro ao milionário, que neste caso é um cego. Talvez se salve o Poeta, porque sem poesia não haveria “estímulos neste Mundo”. E “Um sonho” é, provavelmente, o primeiro “poema dramático” que encontrou um palco.