O corpo humano é o fio condutor do novo livro de poesia de Maria do Rosário Pedreira.
Corpo do artigo
Tantas vezes maltratado ou simplesmente ignorado por quem deveria zelar antes de mais pela sua preservação - ou seja, os ocupantes provisórios que somos todos nós -, o corpo assume o lugar central que lhe pertence no novo livro de Maria do Rosário Pedreira.
Não é uma simples abordagem temática que encontramos nestas páginas, admiravelmente estruturadas em torno de um conceito comum. Cada um dos 60 poemas, divididos em três capítulos, corresponde a um órgão ou região anatómica específica, como se lhe tivesse sido dada a oportunidade de nos interpelar diretamente e, por via disso, estancar as tais agressões a que o sujeitamos demasiadas vezes.
Dessa auscultação interior chega-nos uma voz a vários tons, ora reflexiva ora mais urgente, mas sempre atenta e dotada de uma lucidez sempre desarmante.
Acima de tudo, cada poema transporta uma narrativa muito própria (uma espécie de micro-romance) com a qual a autora tanto nos confronta com a "matéria descartável" de que são feitos os dias, como nos inquieta ainda com a imagem do "lobo que uiva lá fora pela nossa carne".
Neste regresso à poesia ao cabo de uma década, o impacto do tempo no corpo é assunto recorrente. Porque "daqui até à morte é um instante", há um coro de observações que apontam para um destino do qual optamos por abstrair-nos, convencidos de que desta forma iludimos a sua chegada.
Da mulher (ou homem) que, ao olhar-se no espelho, constata que já teve "um rosto mais bonito e mais puro" por ter esbanjado "demasiados dias com lágrimas e maus romances" às memórias de um "tempo feliz" em que "tudo era grande", subjaz a certeza de que "o tempo põe sempre num lado o que tira do outro".
Assolado maioritariamente pelo peso dos anos, o livro não se furta a outros territórios, de que o exemplo mais flagrante é o segundo capítulo, "O teu corpo humano", no qual o estado do Mundo entra por estes poemas adentro.
Se na primeira e última partes predomina a esfera íntima, neste núcleo poético são postas em plano de destaque as consequências do individualismo feroz, como a falta generalizada de empatia pelo outro, a solidão exacerbada ou a crise social e as desigualdades acentuadas pela pandemia, que incutem a estes dias "uma tristeza passada a ferro".
O meu corpo humano
Maria do Rosário Pedreira
Quetzal