Distinguiamo-nos dos demais à distância, não pelos trajes mas pelo ar aparvalhado com que percorríamos a medina de Fez, a maior do mundo árabe.
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Seguíamos em fila indiana, encabeçados pelo nosso guia, Abdul, que tinha a particularidade de não ter uma mão, pormenor que nenhum de nós se tinha atrevido a mencionar. "Seria um ladrão?".Talvez fosse, mas já reformado, afinal, era supostamente um guia oficial, apesar de não ter qualquer tipo de credencial.Também não esperávamos que sacasse um distintivo como nos filmes americanos. Estávamos em Marrocos, que fica a uma curta distância geográfica mas que nos transporta para um tempo e para uma sociedade muito além do que a nossa mente possa imaginar. Como num formigueiro humano, tudo era regido por uma organização extrema. Já tinhamos passado os curtumes, os ourives, os artesãos instalados em palácios de paredes azuis, quando resolvemos entrar numa loja de mezinhas onde havia "remédios para todos os males". Aos rapazes foi-lhes oferecido afrodísiacos para agradar às gazelas (meninas). O melhor estava para chegar - os cosméticos. Uma das raparigas, que era chamada de Fatema (filha do profeta), ofereceu-se para ser pintada como uma árabe. De sorriso castiço, o maquilhador pega no seu pauzinho de madeira e começa a pintar-lhe os olhos como "o povo do deserto". De olhos postos no tecto, ela começa a chorar lágrimas de um vermelho espesso. Histéricos com o acontecimento, começamos por perguntar se estava bem. O nosso anfitrião questionou-a em francês se tinha lentes de contacto e ela respondeu que não. À bom português, um dos rapazes atirou : "Porra, se estás bem só podes ser a santinha que chora lágrimas de sangue." Falso alarme, a cliente anterior tinha posto kòhl (pigmentação em pó com que os árabes pintam os olhos) vermelho. O homem agarrado ao peito tremia que nem varas verdes, acabámos por trazer frascos de kòhl de todas as cores com desconto. No fim, abraçou-a e garantiu-lh : "Vou-me lembrar para sempre de ti, a gazela que chorava lágrimas de sangue".