Pode um simples livro ser uma contundente arma de arremesso político, filosófico e moral? Aposta da Guerra & Paz para a reta final do ano, "Apologia de Sócrates" aí está para prová-lo.
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Quase 25 séculos nos separam desde a tarde em que Sócrates se defendeu, perante meio milhar de jurados, das acusações torpes de ter corrompido a juventude e zurzido dos deuses. E, todavia, cada palavra, entoação ou simples inflexão da voz do grande mestre do pensamento clássico manteve o seu frescor original, relembrando-nos a todo o instante do modo dúplice como o Homem pode ser simultaneamente o criador das façanhas mais inacreditáveis e o agente destruidor que reduz a pó tudo quanto logrou alcançar.
Se esse discurso foi capaz de sobreviver ao próprio tempo, deve-o, em primeira instância, a Platão, o infatigável pupilo que verteu (ou recriou, dependendo do ponto de vista) em palavras os argumentos utilizados por Sócrates para escapar à fúria dos homens.
Peça retórica de renovado encantamento, esta apologia não é tanto a defesa de Sócrates como a defesa do pensamento livre enquanto mecanismo fundamental para a edificação da sabedoria. E num período fértil em convulsões como este, em que assistimos ao improvável avanço de forças obscurantistas que acenam com o medo para converter os ignorantes, esta apologia assume-se como uma contundente arma de arremesso político, filosófico e moral. Pronta a ser remetida ao cuidado dos que insistem em ignorar os últimos resquícios de dignidade.
Às acusações infundadas de que foi alvo, movidas pelos seus opositores, Sócrates respondeu com o ardor dos apaixonados que sabem ter a razão do seu lado. Lá no íntimo, como se depreende das suas palavras, sempre soube que era um homem condenado antes mesmo de tomar a palavra.
"Tenho de vos dizer, atenienses: o temor da morte é apenas isto, julgar ser sábio sem o ser, pensar-se que se sabe o que não se sabe. A morte pode até ser o maior dos bens para o homem", proclama em sua defesa, já ciente do destino que o esperava.
Mas, mesmo aparentemente derrotado pelo voto popular, Sócrates soube que nem todo o veneno contido na taça de cicuta que foi obrigado a beber era suficientemente poderoso para silenciá-lo de vez. Como escreve o editor Manuel S. Fonseca no prefácio da edição, "com este estranho ritual se estabeleceu o começo da forma de pensar e argumentar a que chamamos filosofia. Não podia ter havido começo mais poético nem trágico".