Artista galego realiza primeira exposição individual no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco. Para ver até março de 2024.
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Xosé Luís Otero (n. 1966) nasceu na pequena aldeia de Nocelo da Pena, na Galiza (Espanha), tendo tido uma infância marcada pela religiosidade e pelas memórias tristes de uma Galiza franquista ao abandono, distribuída, literalmente, por meia dúzia de apoiantes de Francisco Franco (1892-1975).
A fé em Deus e a doutrina católica apresentavam-se como agregadores do povo sendo, simultaneamente, causa do seu silêncio, da sua resignação, demasiado ocupados que viviam os galegos com a sobrevivência.
Desengane-se quem ache que em autocracia e ditadura não há corrupção. Pelo contrário, o silêncio e a construção de uma estrutura eficaz de censura e de manutenção do poder no tempo, exige uma rede de amiguismo bem oleada. Ainda este ano, o jornalista Marco Alves (n.1977) publicou “Salazar confidencial – A história secreta da rede de cunhas e favores do Estado Novo”, deixando a descoberto a imagem do homem sério do fascismo que vai ganhando, preocupantemente, mais adeptos em pleno século XXI.
Ainda que a exposição “A Viagem”, de Xosé Luís Otero, com curadoria de Jorge da Costa (n. 1968), patente até 3 de março de 2024 no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco (CCCCB), não seja, diretamente, sobre o tema, as memórias de infância e de contexto que estão na génese de algumas das obras apresentadas, imediatamente me reportaram para um tempo triste e de contraste e para esta necessidade de, nos países com um passado fascista recente, fazermos o exercício da pós-memória, saindo da negação e do espírito do “dantes é que era bom” que nos deve preocupar, sendo revelador de uma imensa desinformação e crescimento dos populismos.
Castelo Branco, cidade capital de distrito, situada no coração da Beira Baixa, é exemplo de progresso e de como o hoje, no interior do país, é inegavelmente melhor do que aquilo que alguma vez foi. O CCCCB é disso bandeira.
Trata-se de um equipamento com um robusto projeto de arquitetura do catalão Josep Lluis Mateo (n. 1949), em colaboração com o arquiteto português Carlos Reis de Figueiredo (n. 1951), com área expositiva, um fabuloso auditório pensado para a música de câmara e serviços anexos, essenciais ao bom funcionamento de uma qualquer estrutura que se queira dedicar à programação artística contemporânea.
Abriu em 2013 e, desde então, já acolheu 23 exposições de boa qualidade. Castelo Branco tem, na verdade, um bom conjunto de equipamentos culturais e de patrimónios visitáveis, merecendo a debandada até às Beiras.
Xosé Luís Otero apresenta, então, uma exposição organizada em núcleos que nos remetem, no imediato, para os referenciais do aprisionamento interior e predeterminado do catolicismo: “7 pecados capitais” (na imagem), “O medo”, “Distopia”, “A culpa e o perdão” ou o “O crime”.
Não obstante, o artista evidencia um elevado sentido poético de leitura dos temas, misturando elementos da casa da infância (como uma singela mesinha de cabeceira) com as mitologias e alegorias de viagem, que têm na barca de Caronte epílogo.
Ao longo dos três pisos da área expositiva do CCCCB, Xosé Luís Otero enfatiza a sua relação com os materiais, preferencialmente endógenos, como as cascas dos troncos de eucalipto que formam gárgulas, descodificadas pela sua concentricidade; mas também o uso do papel reaproveitado e transformado por pigmentos naturais, ou ainda a tal barca feita de parte do teto da casa de infância.
A linguagem varia entre a ocupação quase arquitetural do espaço, a presença de figurações que irrompem no têxtil ou a palavra que de desenha nas estruturas onde se combina papel, madeira e acrílico recortado imitando o naperão da lembrança de outrora.
A riqueza desta exposição não está apenas na viagem imediatamente sugerida pela barca, mas pelas viagens a que nos convoca, numa diversidade de tecnologias e materiais que usufrui de uma intensidade e coerência plástica dignas de um grande artista, de um criador maior.
José Luís Otero e o curador, Jorge da Costa, pensaram uma exposição para este espaço, relacionando-se com as peculiaridades da sua arquitetura e trazendo ao coração da interioridade territorial, a reclusão do interior de outrora, dominado pela ocultação das vontades e do sentir.
Visitar Castelo Branco é, também por esta exposição, obrigatório, para que nas nossas viagens pelos fantasmas mal resolvidos do passado nos deixemos inundar pelo belo grotesco que habita no horizonte da lembrança, que cruzamos com os desafios de hoje.