Misto de realismo e caricatura, livro de BD de Paul e Gaëtan Brizzi proporciona uma espetacular leitura do romance clássico de Miguel de Cervantes.
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A cada nova leitura, um livro proporciona novas descobertas, novas interpretações, até. Mais ainda quando, como em "Dom Quixote de la Mancha", reinterpretado pelos irmãos gémeos Paul e Gaëtan Brizzi, que, à nossa nova leitura, acrescentam a sua visão desenhada. E - permitam-me escrever - que visão!
Esta não é a primeira obra do duo que a Arte de Autor e A Seita coeditam em Portugal, pois há cerca de um ano já tinham disponibilizado o grandioso "O Inferno de Dante".
Para quem ficou deslumbrado com essa visão, o que primeiro chama a atenção nesta versão do clássico intemporal de Miguel de Cervantes é a completa mudança de registo gráfico. Se aquele assentava num realismo extremo na representação dos vários círculos do Inferno, agora as personagens surgem num estilo caricatural e satírico, mais adequado ao tom do romance original de Cervantes. Esse retrato, assumidamente distorcido, torna mais evidente o estado de permanente alucinação de Quixote e o quão apatetado é o seu escudeiro, acentuando o humor com que o relato é desenvolvido.
O que não impede que esse mesmo traço represente a maldade, a violência e a incompreensão dos outros humanos perante as alucinações do suposto cavaleiro. O efeito é tão mais evidente, quanto os cenários exteriores e os interiores das habitações são trabalhados com um realismo próximo do utilizado em "O Inferno de Dante", num contraste que permite aos gémeos exibirem todo o seu virtuosismo. Que também alardeiam quando aplicam cor numas poucas pranchas, aquelas em que oferecem aos olhos deslumbrados do leitor o que vê ou imagina ver Dom Quixote. São exemplos os gigantes em lugar dos moinhos de vento, a bela Dulcineia em lugar da surpreendida camponesa perante a exaltação da sua beleza pelo protagonista ou a suposta cavalgada em Pégaso aquando de uma das partidas que lhe são pregadas.
Desta forma, esta leitura divertida e ritmada, com o belíssimo traço salientado pelo formato generoso da edição, que torna a leitura espetacular e um autêntico passeio pelo universo que Cervantes criou, permite descobrir "Dom Quixote de la Mancha" de forma renovada, destacando pormenores ou dando substância que noutras leituras podem passar despercebidos e permitindo-nos contemplar o que até aqui só imaginamos.