
Dorothée Munyaneza convoca uma dramaturgia feita de cicatrizes visíveis do genocídio do Ruanda em 1994, e outras, mais profundas
Foto: Patrick Berger
Coreógrafa britânico-ruandesa Dorothée Munyaneza apresenta esta sexta-feira e sábado a sua nova criação, "Umuko", no Teatro do Campo Alegre, no Porto.
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"Umuko", de Dorothée Munyaneza e da sua Companhia Kadidi, afirma-se como um gesto de escuta radical, um território onde o corpo se levanta contra o esquecimento. Munyaneza convoca uma dramaturgia feita de cicatrizes visíveis do genocídio do Ruanda em 1994, e outras, mais profundas. Nada aqui se oferece como espetáculo no sentido convencional: "Umuko" é uma ferida iluminada, um percurso que insiste em regressar ao lugar onde a vida se recusou a parar.
A cena, quase despojada, funciona como um espaço de respiração coletiva, com canto e muita percussão corporal em uníssono. A música, por vezes murmurada, outras com um sopro de urgência, instala uma vibração íntima que contamina o público. Cada gesto transporta a memória de muitas outras vozes silenciadas. Há momentos em que esse silêncio se torna o verdadeiro protagonista, espesso, tenso, a exigir que a plateia se aproxime e confirme que também ela é responsável pelo que acontece ali.
A força do espetáculo reside nessa contínua negociação entre vulnerabilidade e resistência. Munyaneza não procura explicar; oferece presenças que se sustentam na opacidade do vivido. O público é convidado a abandonar a distância cómoda da observação e a ceder a um estado de escuta que se aproxima do ritual. Cada movimento parece nascer de uma urgência partilhada, como se a memória coletiva do Ruanda pulsasse nas articulações das intérpretes, convocando, sem vitimização, um futuro possível.
"Umuko" - uma árvore vermelha que invadiu o imaginário da coreógrafa britânico-ruandesa - é um eco de potência política. A peça desenha um mapa de sobrevivência, onde o corpo, mesmo exausto, encontra um caminho. E Munyaneza constrói um espetáculo que nos devolve à pergunta essencial: o que fazemos com o que herdamos? O palco torna-se, então, um espaço possível de reparação lenta.

