Valter Hugo Mãe: "Precisamos de muitas compensações para que a vida valha a pena"
A morte recente de amigos e familiares esteve na origem da escrita de “Educação da tristeza”, livro que é “um manifesto humanista”.
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“Sem caber em lugar nenhum”, após assistir à partida de familiares e amigos chegados num curto espaço de tempo, Valter Hugo Mãe entregou-se à escrita de “Educação da tristeza” para homenagear os seus mortos, mas também para provar que a “saudade tem de comportar uma dimensão de celebração”. O resultado é um conjunto de textos fortemente autobiográficos com os quais o romancista diz ter aprendido a domesticar a dor.
Este é um livro nascido da dor, mais concretamente das perdas que sofreu num curto espaço de tempo. O sofrimento pode ser um estado fértil de criação?
No instante, nunca. É só um sofrimento. Mas depois, há qualquer coisa na transformação da vida em literatura que é muito redentora. Não dá para resistir, por mais pudor que se tenha. Quando se faz algum tipo de expressão artística, vamos buscar uma espécie de suporte que faça com que a dor passe a ser um certo objeto, que possa ser contemplado a partir de um ponto de vista exterior.
A dor é domesticável?
Acho que sim. De repente, a dor passa a ser exterior e podemos observá-la como uma coisa pousada diante de nós. É um objeto que educamos e podemos guardá-lo, como se fosse da casa. Deixa de ter tanto poder para nos terminar.
Que papel teve a escrita deste livro no processo de cicatrização da dor?
No meu caso, funcionou como um certo diálogo. Não gosto da ideia de escrever cartas ao mortos. Gosto da epistolografia efetiva, quando a podemos entregar a alguém. Mas, ainda assim, tive a impressão de que escrever os textos fundamentais deste livro passou por uma experiência de tentar imaginar alguém do lado de lá. Ao escrever e colocar a pergunta, pude pressentir essa resposta. O diálogo, mesmo que desfasado, é sempre indutor de companhia.
Este foi o seu “diário de um mau ano”, como no título do livro de J. M. Coetzee?
De início, ainda tive a intenção de fazer deste um livro engraçado ou humorizado. Por um instante, achei que fizesse sentido percorrer um certo anedotário da vida. Sentimo-nos sempre humilhados pela perda e, por isso, há uma dimensão ridícula nesse sofrimento que nos humilha. Mas depois foi inevitável que em muitas passagens o tom se tenha tornado mais solene. Era impossível rir todo o tempo.
A alegria está condenada a ser um estado de alma passageiro?
Por mais extremas que sejam, as alegrias têm propensão para uma dimensão avara. Nunca entregam tudo e não nos permitem que nos instalemos numa felicidade sem prazo. Fogem mais entre os dedos do que a juventude ou até os sonhos. Não digo que a vida seja propriamente uma merda, mas faz-se caminhando para o abismo total. Precisamos de muitas compensações para que a vida valha a pena.
Escreve a dada altura do livro que a saudade deve ser sinónimo de alegria e não de tristeza. Porque resistimos tanto a essa ideia?
Não aceito ficar nessa dimensão do fatalismo. Educar a tristeza é tratá-la como uma indigente. Não podemos humilhar os nossos mortos fazendo com que eles signifiquem a tristeza. A saudade tem de comportar uma dimensão de celebração. Com o tempo, a saudade vai aligeirando a sua componente mais violenta e vai entregando uma certa festa em torno da pessoa que é lembrada. Vamos tendo saudade como alguém se enternece. É uma tristeza cada vez mais complexa e talvez mais grata, que sucumbe à evidência de termos conhecido e amado aquelas pessoas. Para mim, o ponto fundamental é jamais aceitar que as pessoas que me morreram passem a significar apenas um património de tristeza, como se trouxessem à minha vida uma miséria que não posso aceitar.
A idade não nos ensina a lidar com a morte?
Sabemos talvez melhor onde pôr os pés. A idade talvez nos traga a impressão de que, caindo no abismo, estamos capazes de usar pés de cabra e, por isso, talvez nos consigamos equilibrar no mais ínfimo espaço. Vamos cair de qualquer forma. Há sempre uma incursão de vazio e injustiça profunda, mas parece que no meio daquilo tudo já conhecemos o absurdo e conseguimos manter os pés fincados num nico de chão.
Se a morte não fosse o tabu que é, aceitá-la-íamos melhor?
Propendemos muito para uma cultura de higienização profunda de tudo quanto parece menos comercial e que se opõe a uma ideia de juventude longeva, bela e capaz. Tudo na nossa cultura ocidental parece elogiar esse estado de graça que é a juventude, onde podemos cometer todos os excessos. Com uma ou duas horas de sono estamos renovados. A verdade é que a juventude é epifânica. Tendemos a considerar jovens perfeitos velhos. Temos a tendência para infantilizar pessoas que já deviam estar no contingente dos adultos. A folia com a juventude é muito tonta e uma forma de não nos preparar para coisa nenhuma. Quando estamos virados apenas para o lado impune da existência, não temos depois arma nenhuma para lidar com os altíssimos preços da idade e da consciência.
Termina o livro confessando que escreve para saber quem é. Essa busca identitária não mudou com os anos?
A sensação que tenho é que procuro a definição de uma identidade, mas já a partir de uma certa abundância. Um pouco como o Eduardo Lourenço dizia a propósito de Portugal. Neste instante, tenho a impressão de que estou bastante encontrado. Não gostaria de estar tanto. Tenho uma certa avidez pelo lado ainda não explicado, que ainda pode reservar algum mistério. Aquilo que sei sobre mim está cativo e eu quero o lado liberto do que ainda posso conter. É uma espécie de lamúria de um homem que quer saber mais do que aquilo que está perfeitamente definido. A única coisa que parece justificar o dia de amanhã é o livro que ainda não está escrito. Os livros escritos ajudam-me de muitas maneiras, mas já não me salvam. O que me salva é o que ainda não escrevi.
Se “Contra mim” era uma revisitação do passado, vê “Educação da tristeza” como uma visitação do presente?
Este livro é uma espécie de cartão de identidade atualizado. Para mim, funciona também como uma passagem de crise de crescimento. No livro, cito um artigo de uma cientista norte-americana que dizia que os homens ficam adultos aos 54 anos. Vou chegar a essa idade agora em setembro e por algum motivo sinto que tudo me empurra para uma adultez. A partir dessa altura não terei desculpas. Tudo isso me causa um certo entusiasmo. Poder fazer uma revisão profunda do que é a minha vida e propor-me viver mais próximo daquilo para que me sonhei. Estou farto de algumas mesmices da minha vida. Sinto-me mais capaz de transformar algo em meu redor.
Faz ideia do que seja?
Tenho ideias muito concretas. Quero estabelecer a minha casa definitiva. Não me sinto de Vila do Conde. As pessoas sempre me trataram como alguém que mora em Vila do Conde mas não é de lá. Não faz sentido voltar para Paços de Ferreira, onde passei a infância, porque já não conheço ninguém lá. Adoraria experimentar viver no Brasil, mas não é solução porque não tenho lá a família. Não consigo encontrar as minhas origens porque ficaram dispersas entre tantas hipóteses.
Não ser de um só lugar pode ser interessante.
Sim, mas neste momento tenho uma necessidade absoluta de inventar uma origem para mim.