Nova minissérie da Netflix expõe o engodo orquestrado por uma mentora de hábitos de vida saudáveis dedicada a promover uma falsa terapia para um cancro terminal.
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Dona de uma performance magistral, a atriz norte-americana Kaitlyn Dever (vimo-la na minissérie de drama "Dopesick") veste a pele da influenciadora de bem-estar Belle Gibson, australiana que construiu um império lucrativo baseado na cinematográfica história de cura de um cancro cerebral terminal que nunca existiu. Guru do estilo de vida saudável, Belle pregou a mensagem - impostora e desonesta - de que se livrou da fatídica doença adotando práticas por si consideradas saudáveis. Se parece patranha é porque é mesmo: na verdade, Belle nunca foi sequer diagnosticada com um tumor cerebral maligno e muito menos curada com o cocktail de sumos, frutas e vegetais de que se ufanava ao mundo nas redes sociais, na aplicação móvel que desenvolveu e no livro de receitas que a acompanhava.
É nesse caso verídico que se baseia a série australiana "Apple Cider Vinegar" ("Vinagre de Sidra", em português), cuja primeira temporada estreou no mês passado na Netflix e que se desenrola a partir de 2010. No início de cada um dos seis episódios, uma personagem diferente olha para a câmara para deixar claro o que aí vem: "Esta é uma história verdadeira baseada numa mentira." Criado pela argumentista Samantha Strauss (de "Nine Perfect Strangers"), que viveu em Melbourne durante o auge do sucesso da verdadeira Belle Gibson, o drama é uma "análise cultural dos nossos tempos", explorando "o surgimento do Instagram, o fascínio e o crescimento da cultura do bem-estar, a ascensão do fenómeno girl boss [o equivalente a 'mulher empresária'] no mundo das startups e uma era de inocência nas redes sociais, quando ainda existiam poucos mecanismos de controlo".
A espinha-dorsal da série segue duas jovens com bagagens muito diferentes decididas a curar as graves doenças de que padecem através de hábitos de bem-estar, enquanto influenciam as suas comunidades online. Uma delas é Belle, outra é Milla Blake (inspirada em Jessica Ainscough, "a guerreira do bem-estar" que morreu aos 30 anos com um cancro raro, em 2015), que também promove terapias alternativas para tratamento de cancro. A diferença crucial entre ambas é que Milla é efetivamente doente oncológica e, mesmo que erroneamente, acredita de facto estar a ser curada pelos métodos não-tradicionais. Menina de ouro, nascida num lar feliz, com acesso a uma boa educação, um namorado de sonho e meios para participar em retiros, acaba por encontrar o seu lugar numa rede social emergente onde ganha popularidade. Para ela, tudo o que prega é verdade. Por isso, a personagem de Milla é sobre o perigo da ilusão, da irracionalidade, do autoengano e da propagação de ideologias sem validade científica.
Pelo contrário, Belle, que vem de uma família problemática e pobre, que tem uma relação que de amorosa tem pouco, que conta uma vida de negligências, desvirtudes e falhas, não acredita em nada do que evangeliza. Fá-lo pelo poder da influência, da conquista e do dinheiro. E, por isso, a sua personagem - que não conseguimos odiar e por quem temos empatia - é sobre solidão, carência e ambição frustrada, que encontram numa nova tecnologia terreno fértil para a adoração desejada.