Vincent Cassel é o alter-ego de David Cronenberg em “The Shrouds – As Mortalhas”.
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Já está em exibição um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano, “The Shrouds – As Mortalhas”, não só o regresso em grande do horror clínico de David Cronenberg, como o filme mais pessoal do canadiano: a escrita do guião teve início após a morte da mulher, depois de quarenta anos de vida em comum. Vincent Cassel interpreta o papel de um homem que desenvolve uma tecnologia capaz de colocar câmaras nas mortalhas dos entes queridos falecidos, podendo acompanhar-se a decomposição dos seus corpos. O francês, que passa algum tempo no Brasil, despediu-se em Cannes após a nossa conversa com um “muito obrigado” bem carioca.
É apenas por coincidência que no filme se parece com Cronenberg, até no penteado?
A minha ideia era ser uma espécie de versão cinematográfica do David Cronenberg, porque a história é inspirada em vários momentos da vida dele. Entendi isso como uma direção. Disse-lhe que não seria capaz de falar como ele, mas que tentaria ter o menor sotaque possível. Não posso dizer que tenha querido parecer-me com ele. Limitei-me a deixar crescer o cabelo. E ele achou perfeito. Aconteceu, é a magia do cinema.
Quais foram as reações, ao chegar daquela forma às filmagens?
No segundo dia olhei para o espelho e percebi que estava parecido com ele. Foi de loucos. Muita gente partilhou a mesma sensação e fui ter com ele a dizer-lhe. E ele disse-me que tinha visto as imagens do primeiro dia e também se tinha visto a ele próprio. Deixámo-nos ir nessa direção e depois de ver o filme pela primeira vez sinto que a magia funcionou.
Sendo o tema tão próximo do Cronenberg, como é que o sentiu durante a rodagem?
O David é uma pessoa muito discreta. Nunca partilha muito as suas emoções. Disse-me algumas coisas aqui e ali. Disse-me uma coisa mas pediu para não o referir nas entrevistas, por isso não vou dizer o quê. Mas o filme é muito mais do que a história dele. O Karsh produz aquelas mortalhas para lidar com a sua própria dor e o David fez o filme pela mesma razão.
No seu caso, fez alguma diferença estar a trabalhar sobre algo tão duro e íntimo?
Não sofri o filme todo para sentir a dor do David. Tenho de me divertir com o que estou a fazer. Mas compreendi o que ele queria dizer com o filme. Não é preciso estar sempre a chorar, a forma como ele lida com a sua história é muito mais interior.
O que mais o impressionou quando leu o guião?
As cenas do sonho. Há três ou quatro, mas quando as filmei, fiz como se fosse apenas uma longa sequência. Não fazia a mínima ideia como é que iriam parecer. A ideia de desejo com uma pessoa com deficiência que se ama é algo que nunca tinha visto no cinema. Será que eu alguma vez iria amar alguém fisicamente naquele estado? Não sei, é uma questão muito interessante para nos confrontarmos.
Como é o Cronenberg como realizador?
O David não é uma pessoa que fale muito. Pode falar de outras coisas no geral, mas não nos dá muitas indicações. Deixa-nos ir, gosta que o surpreendamos. Se alguma coisa correr mal, o que é muito raro, então vem falar connosco. Mas só para corrigir o tom de uma palavra, nunca há nenhuma explicação muito profunda. Nunca é muito sério, apesar de ser terrivelmente sério. Tem uma grande elegância e subtileza.
Apesar do filme ser sobre o luto, também tem uma certa ironia…
Quando li o guião pela primeira vez senti que era muito profundo e negro. Depois li outra vez e liguei para o David para lhe dizer que por vezes me parecia uma comédia. É claro que é David Cronenberg puro, mas diria que tem um lado de Tim Burton ou de Woody Allen. Há o humor judeu que a Becca tem, e ao mesmo tempo esse lado visual grotesco, com os corpos em decadência.
Como é que se passaram as cenas mais íntimas com a Diane Kruger?
O meu conforto nesse tipo de cenas vem do conforto da pessoa com quem estou a contracenar. Sempre me senti responsável pelo conforto da pessoa com quem estou a trabalhar. Mas não só em situações como estas. Gosto de sentir que os atores à minha volta estão bem, caso contrário fico stressado. Parece que é uma coisa muito generosa, mas nem é. Para mim, uma filmagem tem de ser um local agradável.
Mas as cenas de sexo e nudez devem ser as mais desconfortáveis para um ator.
Já fiz muitas cenas de sexo na minha carreira e quando sinto que há tensão do outro lado prefiro convidá-la para um cocktail para relaxar e dizer que o melhor é divertir-nos com o que estamos a fazer. O melhor é não levar a sério essas cenas de sexo.
Trabalhou com um coordenador de intimidade, como é agora habitual?
Não me lembro se havia alguém com essa responsabilidade na rodagem. Já fiz alguns filmes desde que essa coisa existe. Mas sinto que não preciso, nunca estive envolvido em nenhuma situação estranha durante uma rodagem, embora tenha ouvido de vários casos e aí sim, teria sido necessário. Mas se toda a gente se comportar bem, qual a necessidade? Sou sempre o primeiro a tapar a atriz que está comigo, tenho muita atenção a essas coisas. Sou eu o coordenador de intimidade, é assim que devia ser.
Como espetador, sempre foi fã do cinema do David Cronenberg?
Lembro-me que no dia em que fui fazer o meu primeiro casting, tinha 13 anos, fui ver o “Scanners”. Quando cheguei a casa o meu pai ficou furioso. Quando era miúdo, os filmes do David Cronenberg eram considerados filmes de terror. Os críticos inventaram a imagem dele de mestre do horror clínico, mas muito mais tarde, quando se tornou um realizador sério, digamos assim. Mas eu ia ver os filmes dele para apanhar uns sustos.
A sua filha Deva Cassel é agora atriz…
Quando se cresce no meio do cinema vão-se aprendendo coisas. Nem sabia se ela estava a gostar ou se o poderia fazer com o estado de espírito certo. Mas parece que está a levar a carreira muito a sério. Não acho que seja uma boa ideia empurrarmos os filhos para esta profissão, porque nunca se sabe o que vai acontecer. Há muita rejeição pelo caminho. Se correr bem, é maravilhoso. Mas se não correr, chegamos aos 40 anos e não temos nada. Mas ela sabe disso e pelo que vejo penso que há um lugar para ela.
Que conselhos é que lhe deu?
Não. Os filhos fazem o que querem, não o que lhes dizemos. Depois, quando erram, percebem e não o voltam a fazer. Todos nós erramos, eu errei.
Essa rejeição de que fala, como é que lidou com ela, quando existiu?
Quando estamos a tentar encontrar o nosso lugar e antes de conseguir abrir portas, há sempre qualquer coisa, ou era muito novo, ou era o meu nariz ou as minhas orelhas. Ou falava depressa, ou isto e aquilo. A melhor resposta é aprender a ter confiança em si próprio. É isso que tento dizer à minha filha.
Desde “O Ódio”, há mais de trinta anos, que o vemos como ator de cinema. Como ator, como é que vê a chegada das séries de televisão?
Por 600 euros, podemos comprar um bom ecrã e ter uma experiência cinematográfica em casa. Há coisas que são feitas a pensar nisso. Há séries incríveis, com muito mais dinheiro e investimento criativo que muitos filmes. Não vejo grande diferença. Eu não me importo, já fiz coisas para as plataformas. O que interessa é o projeto. As coisas estão a virar nesse sentido. Onde o dinheiro estiver, lá vamos nós. Foi sempre assim.
E o teatro? Não o tem seduzido muito, ultimamente.
Fiz muito teatro quando comecei. Foi no teatro que cresci como ator. Mas hoje quero filmar e depois ficar livre. Ficar preso todos os dias num palco, não é para mim. Por razões muito práticas. Se quisermos ganhar dinheiro no teatro temos de fazer uma peça durante um ano. Fazer tournée em pequenas cidades durante o inverno. Prefiro estar aqui no Festival de Cannes e depois voar para o Rio.
O Rio de Janeiro continua a ser a sua base?
O Rio é definitivamente uma das minhas bases. Já passei lá muito tempo e vou continuar a passar. Sou francês, mas “tenho o meu coração no Rio” (em português). Sou o que chamam um Parioca, um carioca de Paris. O que é divertido em ser ator é que podemos mudar de pessoas à nossa volta, de país, de língua. É disso que gosto. Este ano fiz o Cronenberg, o ano passado fiz um Astérix. É isso que um ator deve aproveitar, mudar de um mundo para outro.