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Virginie Efira , 46 anos: "Filmes ou livros sobre este tema [feminicídio] podem ajudar as mulheres a falarem sobre os seus problemas".
FOTO: AFP
Atriz franco-belga falou ao JN sobre a violência passional de “Só nós dois”, drama já em exibição nos cinemas. "É muito recente o uso do termo feminicídio", confessa a artista, "o que o filme mostra só muito recentemente é considerado uma forma de abuso".
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Blanche conhece Greg, por quem se apaixona perdidamente. Mas o que parecia um casamento perfeito torna-se um pesadelo, vítima da sua crescente possessão. E há ainda uma gémea a complicar a história... É o drama feminicida “Só nós dois”, adaptado do romance de Éric Reinhardt, realizado por Valérie Donzelli. Ao lado de Melvil Poupaud, bom em papéis simpáticos e ainda melhor em vilões, Virginie Efira mostra que é cada vez mais atriz. A franco-belga, catapultada por filmes como “Benedetta” ou “Na cama com Victoria”, esteve à conversa com o JN.
Onde se inspirou para ilustrar o ciúme com que a agridem no filme?
Foi uma mistura de coisas que vi noutros filmes, livros e memórias pessoais do que vi à minha volta. Tive logo a impressão de que a história que o filme conta não é assim tão excecional, é muito corrente, infelizmente.
Nas duas gémeas que interpreta há o seu lado belga e o seu lado francês?
Completamente. A Rose tem algo de concreto, de mais imediato e espontâneo, que pode vir de mim – talvez seja o lado belga, é uma coisa cultural. A personagem de Blanche é inspirada em personagens de Truffaut. Coisas de cinema que a Valérie adora e que eu partilho, uma feminilidade mais afirmada.
Qual foi o seu maior desafio?
Não há nada particularmente difícil quando somos bem acompanhados. É difícil quando um realizador não sabe o que quer, quando não partilha o ponto de vista estético ou, pior ainda, ideológico. Como não era o caso, não houve nada muito difícil. Evidentemente, há as cenas de violência conjugal, psicológica e física.
Como é que enfrentou essas cenas?
Filmamos primeiro essas cenas. Adoro repetir ‘takes’, mas, aqui, se a realizadora dizia para repetir, tinha a impressão de entrar num comboio de horrores. Entre a ‘ação’ e o ‘corta’, era quase algo de masoquista.
Depois de “Benedetta”, e deste filme, é mais difícil para si filmar cenas de sexo ou de violência?
As cenas de violência! Quando se trabalha com realizadores tão bons e tão respeitadores como Paul Verhoeven, é mesmo bom fazer cenas de sexo. O que é interessante nos dois casos é o posicionamento do corpo: é o corpo que mexe, há a exigência de uma certa coreografia, não se pode pedir para fazer como se estivéssemos em casa. É preciso haver uma ideia de cinema.
Trabalhou com coreógrafo de cenas íntimas? O que pensa a este respeito?
É diferente em função da idade. Se tivesse começado aos 20 anos, tinha-me dado jeito. Mas, ter começado mais tarde, ter a idade que tenho [46 anos], ter alcançado algum poder, faz com que possa dizer ao realizador que não faço certas cenas e que não me pode despedir por isso. Com a idade e a experiência, sei quais são os meus limites.
Como lidou com Melvil Poupaud?
Havia entre os dois uma espécie de contrato implícito. Conheço-o há muito tempo, é de uma enorme doçura. Mas eu é que determino os meus limites. A única pessoa perversa durante a rodagem sou eu, se assim posso dizer. Sou eu que vou à procura dos sítios que me permitem fazer a cena – sabendo que depois posso sair.
Este filme é político?
Penso que sim. O próprio Éric Reinhardt disse que o seu romance era político e empenhado. O filme segue a mesma via, mesmo tendo mudado o fim. Só através deste tipo de representação podemos sair da invisibilidade. Conhecemos os números, infelizmente. O que mostramos no filme é sistémico. Há alguns anos não podíamos falar de crimes passionais, estes casos faziam parte do que se chamava “amores tumultuosos”.
Felizmente hoje há outra consciência social...
É muito recente o uso do termo feminicídio. O que o filme mostra só muito recentemente é considerado uma forma de abuso. Filmes ou livros sobre este tema podem ajudar as mulheres a falarem sobre os seus problemas. Para abandonarem uma certa culpabilização, como se fossem elas que estavam na origem destes problemas. Por isso, era melhor nem sequer falar.
Sente a responsabilidade de contar histórias assim?
Dito assim parece demasiado sério. Mas é verdade que a responsabilidade de um ator passa pelas suas escolhas. Pelo olhar dos realizadores com quem trabalha. E que corresponda às nossas próprias crenças. Podemos interpretar personagens horríveis, mas é preciso mostrar as várias nuances de um ser humano. Como espetadora, já vi filmes que me abriram os olhos para determinadas realidades, que me alargaram os horizontes. E temos a possibilidade, através das nossas escolhas, de fazer o mesmo a outras pessoas.
Alguma vez trabalharia com um realizador ou um ator envolvido em algum caso de abuso?
Nunca me aconteceu ser convidada, por exemplo, para um filme do Johnny Depp ou do Roman Polanski. Nunca fui confrontada com questões éticas concretas como essa. Mas é complicado meter todos os casos no mesmo saco. Não podemos separar o homem ou a mulher do artista mas devemos caminhar para um respeito cada vez maior, isso é uma evidência.
Vê perigo no julgamento social moral sem provas?
Devemos estar na posse de elementos tangíveis para condenar alguém. Acredito nas virtudes do Estado de Direito. Se tivermos feito algo de mal, mas tivermos pago a nossa dívida à sociedade, temos o direito de voltar a trabalhar. O que é impossível é ver coisas moralmente repreensíveis e fazer de conta que não se viu nada.
