Em menos de uma década, o mapa dos festivais literários alastrou-se pelo país de uma forma inimaginável. Qual é, afinal, o retorno dessas terras pela aposta nos livros? Viagem ao interior da organização dos festivais literários.
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Serão os festivais literários "as novas feiras medievais", hoje presentes em mais de um terço dos concelhos portugueses, alguns deles até de origem bem mais recente do que a época que se propõem revisitar? A comparação feita ao JN pelo vereador de Cultura da Câmara de Matosinhos, Fernando Rocha, pode parecer exagerada, mas, olhando para o mapa, verificamos que não andará assim tão longe da realidade.
Se alargarmos o conceito de festivais a eventos literários (como programas de incentivo à leitura ou encontros de escritores), concluímos sem dificuldade que, se dependesse do investimento direto de algumas autarquias nesta área, os índices de leitura dos portugueses seriam bem mais elevados.
Das três dezenas de municípios que organizam eventos literários de forma regular - número que subiria de forma exponencial se incluíssemos as feiras do livro com programação cultural autónoma -, há um punhado de cidades que são referência nesta área.
Em apenas uma década, o Escritaria, em Penafiel, afirmou-se como uma das marcas de um município cujos símbolos até então eram o Mosteiro de Paços de Sousa e a Rota do Românico. Isso mesmo têm referido os turistas que, instados a eleger os motivos da visita ao concelho nortenho, colocam nos lugares cimeiros o festival que todos os anos homenageia um escritor vivo de língua portuguesa.
"Excelente negócio"
Num estudo encomendado há meses pela autarquia, a empresa de relações públicas Cision estimou em cerca de 1,5 milhões de euros o retorno mediático (ou seja, o valor do espaço publicitário ocupado pelas menções ao evento nos meios de comunicação) que Penafiel obtém todos os anos. Um valor 30 vezes superior aos 50 mil euros diretos investidos pela edilidade.
"É um excelente negócio para nós. Acredito que vale a pena investir na cultura", garante Antonino de Sousa, presidente da Câmara de Penafiel, que viu recentemente a Sociedade Portuguesa de Autores eleger o seu município como aquele que possui a melhor programação cultural do país.
Quando tomou posse, há quatro anos, Antonino de Sousa resolveu dar continuidade ao festival criado durante o mandato de Alberto S. Santos, também escritor.
É pela repetição desse cenário que trabalha o vereador da Cultura da Câmara de Matosinhos, em cujos mandatos foram criados os festivais literários Festa da Poesia e Literatura em Viagem (LeV) que ainda hoje se realizam, com evidente sucesso.
"O importante é que quem vier a seguir terá dificuldade em acabar com ambos os eventos", salienta Fernando Rocha.
Nos inquéritos à população que a Autarquia promove, a taxa de aprovação supera os 80%, reafirmando a crença do vereador de que os matosinhenses há muito perfilharam os dois festivais.
Essa ligação é confirmada pelos números: das três mil pessoas que assistiram à última edição do Literatura em Viagem, cerca de metade reside no concelho.
"New York Times" elogia
Nos dois festivais, a câmara investe uma verba ligeiramente inferior a 100 mil euros. O valor representa 5% dos dois milhões de orçamento municipal da Cultura, mas contribui também para a afirmação do nome de Matosinhos.
Há um par de anos, o "New York Times" dedicou uma reportagem de duas páginas a Matosinhos, intrigado com o êxito de um pequeno festival que conseguia atrair nomes como Paul Theroux, Howard Jacobson, Claudio Magris ou David Mitchell.
"No início, quando convidávamos os autores, alguns deles nem sabiam onde ficava Portugal", recorda Fernando Rocha.
Se excetuarmos o facto de ter sido a cidade natal de Eça de Queiroz, a Póvoa de Varzim não era propriamente conhecida, até há um par de décadas, pela excelência cultural.
O panorama mudou a partir de 2000 com a realização do Correntes D"Escritas, um encontro de escritores de expressão ibérica que caiu no goto de muitas centenas de pessoas que todos os anos em fevereiro reservam quatro dias da sua agenda para participar na iniciativa.
"Há portugueses a morar no estrangeiro que vão à Póvoa de propósito todos os anos para assistir ao evento", destaca Francisco Guedes, o mentor de um evento que já não é apenas literário: "É claro que o lado social é muito forte e há muita gente que vai apenas para aparecer".
O impacto do "Correntes" é notório, mas, ainda assim, muito distante dos números do Folio. Os 600 mil euros de orçamento anunciados na primeira edição do Festival Literário Internacional de Óbidos - no ano passado, o orçamento caiu 35% - pulverizaram os valores habituais neste segmento, situados entre os 25 e os 75 mil euros. "Há muito que se fazem bons festivais literários em Portugal, mas o Folio mudou o paradigma: aliou a literatura a uma grande festa da cultura", enfatiza a vereadora da Cultura da Câmara de Óbidos, Celeste Afonso.
À boleia da "marca"
Mais do que um mero festival, o Folio é um dos vértices de uma estratégia mais ampla, a de Óbidos Vila Literária, que se manifesta em atividades regulares durante todo o ano e num número substancial de livrarias que resolveram sediar-se no concelho nos últimos anos.
A programação exibe também uma vitalidade invulgar em eventos literários, ao reunir também músicos, artistas plásticos, ilustradores ou cineastas.
Para a responsável pela pasta da Cultura na autarquia, o Folio é uma aposta ganha também no plano económico: "Há um relatório de valorização da marca, feito pela empresa Cision, que mostra que o Folio 2016 teve um retorno superior a 12 milhões de euros, o que o torna no festival cultural mais valioso em Portugal, incluindo os festivais musicais. Este ano contamos ter ainda mais notoriedade para oferecer aos nossos parceiros".
Por muito popularizado que esteja, o modelo de festival não detém o exclusivo da aposta das autarquias. Em Belmonte, optou-se por um caminho distinto. Em vez de concentrar iniciativas em dois ou três dias, como chegou a ser feito, optou-se agora por "uma programação ao longo do ano que lhe permite uma maior interação entre escritores e leitores, sobretudo na relação com as escolas", salienta João Morgado, responsável do gabinete de comunicação.
Outra das apostas passa pela promoção de exposições documentais. Numa das alas do castelo medieval, em colaboração com a Torre do Tombo, têm sido mostradas preciosidades históricas como a crónica de Azurara ou a "Carta do Achamento", de Pêro Vaz Caminha.
"São verdadeiros sucessos e têm motivado muitas visitas aos seus museus e restaurantes", defende João Morgado, salientando que o município elegeu o binómio turismo/cultura como "setor estratégico".
Tal como em Belmonte, Vila Nova de Foz Côa também se debate com os mesmos problemas que qualquer localidade do interior profundo enfrenta. Do afastamento dos centros nevrálgicos de decisão ao envelhecimento da população e consequente definhar da massa crítica.
Poesia no interior
No entanto, há algo de particular neste concelho transmontano; há 33 anos, um grupo de jovens ousou levar por diante um festival de poesia que, apesar dos altos e baixos, ainda hoje se realiza, tendo atraído ao longo dos anos figuras como Natália Correia, E. M. Melo e Castro e Manuel António Pina, entre muitos outros.
Diretor do festival local, Jorge Maximino acredita que, embora o número de municípios que promovem eventos literários seja hoje muito superior ao registado nos anos 80, o panorama geral está longe de ser positivo. "É cada vez mais difícil hoje assegurar um público numa cidade do interior quando a proposta de programa implica a literatura e não passa por facilidades que hoje em dia se tornaram comuns, mesmo em instituições com grandes meios", critica, apontando o dedo à "concorrência desleal" operada pelos grandes centros urbanos, "com propostas simultâneas que são na verdade subprodutos culturais".
Há ainda municípios que desenvolvem um outro género de iniciativas relacionadas com livros. No concelho de Lousada, por exemplo, o enfoque reside sobretudo na promoção dos hábitos de leitura. Para isso, a autarquia desafia autores - Álvaro Magalhães e António Mota foram os primeiros, mas a lista já inclui mais nomes - a escreverem um livro relacionado com os locais ou as tradições do concelho.
Seguidamente, os escritores interagem com a comunidade escolar local. Cada aluno recebe um exemplar do livro e trabalha-o no contexto escolar, ao abrigo do concurso "Ler Lousada.
O vereador da Cultura, Manuel Nunes, justifica o investimento, que já custou 50 mil euros aos cofres da Câmara, pela necessidade de desenvolver o gosto da leitura junto dos alunos do pré-escolar e primeiro ciclo. "É preciso agarrá-los desde pequeninos e não os largar mais", reforça.
Máquina afinada
Eventos literários em Portugal têm uma estrutura cada vez mais profissional. Internacionalização dos festivais já é uma realidade, com iniciativas em Cabo Verde e Colômbia.
Principais limitações são financeiras. Há autores que cobram 62 mil euros, verba superior à de todo o programa
A primeira edição do Festival Literário de Cabo Verde, entre 30 de outubro e 5 de novembro na Cidade da Praia, vai ter em comum com Portugal mais do que as afinidades entre os dois países. A começar pela programação cultural, a cargo da Booktailors, a empresa que assegura mais de metade dos eventos literários no nosso país.
A escolha é sintomática da evolução que o setor tem registado na última década. A tal ponto que a internacionalização já não é apenas um objetivo distante.
A existir um ponto de viragem nessas ambições, 2013 foi o ano. Como país-tema da Feira do Livro de Bogotá, uma das mais importantes da América do Sul, Portugal apresentou nesses 17 dias 170 eventos, vendendo 15 mil livros e dezenas de direitos internacionais de publicação de autores como Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz ou Teolinda Gersão.
"Essa participação ainda hoje é considerada a melhor de sempre de um país convidado naquela feira", recorda Paulo Ferreira, diretor-geral da Booktailors.
Perante o crescimento registado, custa a crer que tenham passado apenas 20 anos desde que Francisco Guedes foi desafiado a assistir à Semana Negra de Gijón, um enorme festival literário que rompia com as normais do género. "Não era um milhão de pessoas nas ruas, como tinham dito, mas não há dúvidas de que era mesmo muita gente", relembra.
Da cidade asturiana Guedes trouxe a cabeça cheia de ideias de replicar o fenómeno à escala portuguesa. Estava dado o pontapé de saída do Correntes d"Escritas, um encontro de escritores de expressão ibérica que se realiza desde 2000 na Póvoa de Varzim.
Se, hoje, o festival poveiro é conhecido pela mobilização invulgar, indiferente à repetição exaustiva de convidados e cristalização do modelo, há 18 edições o panorama era diferente. Apenas 70 pessoas acompanharam os debates e a continuidade chegou a ser equacionada. "No ano seguinte, já apareceram mais algumas e assim sucessivamente", salienta Francisco Guedes, convicto de que a implementação de um festival é um projeto a médio prazo.
"É necessário que haja um trabalho de sapa durante o resto do ano. Envolver as comunidades. Trabalhar muito de perto com o público escolar. Os três dias do festival são apenas a celebração final, em que se colhem os frutos do trabalho", destaca o criador do Literatura em Viagem (LeV), que presentemente tem produzido o Entre Douro, em Sabrosa, no distrito de Vila Real.
O crescimento deste nicho na presente década tem sido notório. Insuficiente, porém, para travar as críticas dos que apontam como exemplos de modelos organizativos festivais literários no Brasil ou em Inglaterra, onde, apesar das entradas pagas, o que por norma não acontece em Portugal, há sempre uma tremenda participação popular.
Paulo Ferreira discorda desta visão. "Temos sempre a aprender, claro, mas não menos do que eles aprendem connosco", observa. E socorre-se de exemplos concretos, como performances criadas para a Festa da Poesia, em Matosinhos, que têm vindo a ser replicadas noutros países.
Competir com as mesmas condições financeiras, por sua vez, é que é muito mais difícil. O diretor da Booktailors ainda se lembra de quando contactou um autor estrangeiro de nomeada e este lhe pediu 70 mil dólares por uma hora de conversa.
"É mais do dobro do valor que por vezes temos disponível para toda a programação", adianta o responsável.