Festival abriu com casa cheia, cheio de sol e música instrumental. O primeiro dia, com a erudição ambiental de Andre 3000, foi mesmo para os melómanos.
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As primeiras horas do festival Vodafone Paredes de Coura 2024, aquela parte da calefação em que há mais gente a chegar do que a estar, em que tudo parece ainda suspenso, a música aparece pendurada em vapor, foram singulares. Dos seis concertos até à hora do jantar, quatro foram instrumentais, muito cinemáticos mas sem voz, e um deles foi de Andre 3000, o excêntrico ambiental - os outros: Dorian Concept (electro-jazz cacófato para matemáticos volúveis e poetas mancos), Sababa 5 e Glass Beams.
Já: que máscaras eram aquelas dos Glass Beams? Eram maravilhosas, de beleza ameaçadora, como a do seráfico Mike Myers, mas feitas de filigrana dourada intrincada e mistério clemente.
Deixaram uma forte impressão, os três Glass Beams de caras ocultas no seu rodeio na areia, a exalar psicadelismo serpentino, guitarra, baixo, bateria e um groove irrecusável, polirrítmico e cósmico. Foi o concerto mais entusiasmante do 1.º dia até à hora do jantar, a encosta do palco relvado Vodafone cheia de gente sentada e feliz ao sol, depois ainda viriam os pratos pesados, Sampha, Killer Mike, George Clanton, Model/Actriz e Sextile, estes alinhados para as 4.15 da manhã.
A primeira palavra proferida em cima do palco, eram rigorosas 17.30 horas e fazia calor, foi dita em português mas como se fosse um inglês a dizê-la: “Bôa târde”, e ele disse-a arrastada e colada à seguinte, “Párêdés dé Côra, biên-vindósh!”. Era João Vieira, o irónico Wolf Manhattan. A plateia do palco Yorn, o palco pequeno e plano que fica no socalco superior da encosta de Coura, àquela hora polvilhado por pouca gente de pé, recolheu a graça, ergueu o copo, e continuou por ali numa certa indiferenciação benigna, a amparar a angústia que sente uma banda quando é a primeira a tocar.
O set não teve flutuações, manteve a sua segurança neutral de pop low-fi de alegria aguaceirada, algures entre os The Feelies à sombra e Daniel Johnston ao sol, e o que sobressaía era o fato quadriculado de Vieira, e o seu cabelo à David Caruso, cor de cenouras ácidas, e um coelho de cabeça gigante que dançava felpudo entre o quinteto a acenar.
Depois dos Wolf Manhattan e dos seguintes First Breath After Coma + Noiserv + Banda de Música de Mateus (pós-punk sulfuroso, requinte e uma pompa de quase grandiosidade que a encosta recebeu com respeito), os Sababa 5, combo etnográfico do Médio Oriente com tempero de Telaviv, lançaram o seu groove.
Foi como um feitiço: o quarteto de guitarra salpicante, baixo gordo, bateria em ritmo 6/8, teclas a serpentear, sem voz, dá concertos que são bailes elásticos volantes. À hora imediatamente antes da hora dos mágicos cansaços, os quatro Sababa 5 (não veio a voz convidada de Shiran Tzfira), exploradores implacáveis e dedicados, fizeram mais do que a sua parte de música exótica de elevador; encheram a plateia do palco Yorn, e puseram todas a gente, que bebericava ali despreocupadamente, a bater o pé, a dançar de roda, irrefreável, as canções cosidas umas nas outras sem respirar, numa antecâmara de euforia.
E depois veio Andre 3000, o petisco gourmet que arrebatou os melómanos. Andre Lauren Benjamin, o 3000, é o rapper estelar dos Outkast que sacudiu a capa da fama e do rap e agora é um ambiental new age armado de flauta.
Veio tocar-nos “New blue sun”, disco de silenciosas licenças, jazz ecossistémico e descoberta espiritual. É lindo, é exigente, teve muita penumbra, pequenas deflagrações, eruditos focos finos furantes de laser, e mostrou-nos uma das mais fascinantes reviravoltas artísticas do rap vindo da costa do Pacífico.
Voltar a Paredes de Coura, a casa meticulosa de um maníaco musical, 31.ª edição, é como voltar a uma casa que é de todos nós.
Pode consultar no JN os horários dos concertos para os próximos dias.