A artista brasileira apresenta no Fórum Cultural de Cerveira a instalação site specific “Foi bonita a Arte, pá!”. Está patente até 1 de junho.
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Em tempos tão instáveis como os que vivemos, particularmente em Portugal, não deixa de nos merecer toda a perplexidade como é que um país, que tem na viagem, na diáspora e na emigração uma tão representativa parte da sua História, vê uma parte da população assumir determinadas posições em relação à imigração. A verdade é que um povo sem memória é um povo sem futuro e o tal exercício da memória deve servir-nos para bem mais do que reclamar os fastidiosos símbolos que a propaganda do Estado Novo nos fez acreditar que eram (e seriam) os eternos definidores da nossa identidade.
A verdade é que, nos últimos anos, temos assistido à chegada a Portugal de um número considerável de cidadãos naturais do Brasil que, à semelhança do que fazem tantos portugueses que continuam a deixar o seu país de origem em busca de melhores condições de vida, nos escolhem para os seus presentes e futuros.
Não raras vezes, quem chega encontra, recuando 2 ou 3 gerações, origens familiares em Portugal, considerando que, entre finais do século XIX e inícios do século XX, foram tantos os portugueses que rumaram ao outro lado do Atlântico e por lá fizeram riqueza. Em muitos desses casos, a evidência dessa riqueza, particularmente no Minho e na região entre Vouga e Mondego, traduz-se no que definimos como “arquitetura de brasileiros”, ou seja, uma variante mais exótica do que na História da Arte se define como Art Deco.
É também neste cruzamento histórico que encontramos a artista Zélia Mendonça (BR, 1957) que desde 2017 tem rumado a Portugal, anualmente, por longos períodos, tendo encontrado nesta viagem o seu espaço de autodeterminação e afirmação enquanto artista.
Também Zélia Mendonça, depois de alguma pesquisa, descobriu que daqui lhe vinham origens e, provavelmente, a memória inconsciente da semiótica do têxtil na construção da sua identidade feminina.
Mudar de vida aos 58 anos
Natural do Estado de Minas Gerais, a artista dedicou toda a sua vida ao design e produção de mobiliário e, aos 58 anos de idade decidiu abandonar esta atividade empresarial e dedicar-se, em exclusivo, ao gosto da mão e da mente, embarcando numa práxis artística que poderíamos posicionar no designado neopop e, sobretudo, na tendência crescente de afirmação de atividades, tipicamente da esfera do artesanato, como é o têxtil (mas também o são a cerâmica e o vidro), como novas tecnologias das artes plásticas e visuais.
Nas suas obras, Zélia Mendonça estabelece uma reflexão permanente sobre a condição da mulher, recorrendo à assemblagem para criar objetos tridimensionais que combinam a reutilização de dorsos ou sombrinhas, a título de exemplo, onde se agregam botões, alfinetes, crochet, fuxicos da tradição brasileira e outros objetos da memória da casa que dão vida a esculturas e/ou instalações que funcionam como simulacros da nossa memória coletiva.
Por estes dias, numa das suas estadias anuais em Portugal, a artista acolheu o desafio de pensar numa obra que reutiliza cerca de três toneladas de carretéis de linhas de costura, deitados fora pela indústria têxtil do Vale do Ave.
A obra enquadra-se na exposição coletiva “É bonita a festa, pá!”, integrada na programação da Fundação Bienal de Arte de Cerveira para o biénio 2023/24 em resposta à pergunta “És livre?”.
A canção que Chico Buarque (BR, 1944) escreveu no contexto do pós-25 de abril de 1974 é o mote inspirador desta exposição que reúne, única e exclusivamente, artistas naturais do Brasil e que, nos últimos anos, se mudaram para Portugal ou passaram a desenvolver uma parte considerável da sua atividade profissional por cá. Apresenta, também, um núcleo histórico com criadores que fizeram esse caminho nos anos que se seguiram à Revolução, num tempo em que o Brasil permanecia em ditadura.
Foi neste contexto que a artista Zélia Mendonça desenvolveu a instalação site specific [específica do local] “Foi bonita a Arte, pá!”, refletindo sobre a dicotomia entre a condição feminina e os conceitos da Liberdade, produzindo um espaço e tempo de pensamento que se expande das tradicionais formas das belas-artes e solicita aos públicos uma interação emancipada.
Múltiplos caminhos da arte
De notável força visual, a obra combina conceitos como os de sustentabilidade e economia circular, com o regresso das artes plásticas e visuais dos nossos dias às manualidades e às práticas de origem artesanal, reposicionando o lugar da produção artística como lugar de afirmação da mulher e do feminino em territórios que eram, outrora, os da reclusão entre as quatro paredes do lar.
Zélia Mendonça é, por fim, exemplo claro da não existência de um tempo certo para mudar de vida e agarrar os sonhos, quebrando estereótipos que a construção do sistema da arte contemporânea cristalizou, vinculando os artistas a percursos de formação artística em exclusivo nas escolas de artes.
Hoje, cada vez mais, são múltiplos os caminhos para se ser artista, sendo apenas indispensável a persistência, a honestidade intelectual e procura de uma linguagem distintiva.
É através deste seu exemplo que também se elogia a metáfora destes carretéis como linhas da memória, que interessa não perder, sobre a relação entre dois países que foram mais vezes o mesmo do que as suas diferenças.
Para ver até 1 de junho de 2024 no Fórum Cultural de Cerveira, em VIla Nova de Cerveira.