
A supostamente inexpugável fortaleza de Massada, mais do que uma atração turística, faz parte da mitologia nacionalista de Israel
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No primeiro século da nossa era, esmagada pelos romanos a revolta judaica e arrasado o templo de Jerusalém, os últimos resistentes zelotas encontraram refúgio em Massada, palácio-fortaleza erguido por Herodes, o Grande, junto ao Mar Morto. Cercados e prestes a serem derrotados, preferiram o suicídio coletivo à escravidão. Pelo menos, assim se conta.
Talvez no meio do deserto se ouça melhor a voz das ruínas, levada pelo vento que, lá no alto daquela elevação em forma de diamante, nas margens do Mar Morto, varre o que sobra da fortaleza onde os últimos zelotas preferiram o suicídio coletivo a cair nas mãos das legiões romanas. Isso é verdade? Se não se pode dizer que é, também não se pode dizer que não seja. A história do cerco de Massada, nos anos 73 ou 74 da nossa era, é vista de formas dissonantes, seja pelos que veem ali o testemunho de um povo heroico e resistente, seja pelos que entendem ser o episódio demonstração de que o fundamentalismo religioso conduz apenas ao abismo.
Do cerco de Massada sobram-nos duas coisas. O relato de Josefo (Tito Flávio Josefo, nome adotado pelo historiador do século I, de origem judaica, depois de romanizado) e as investigações que vão sendo feitas pela arqueologia. Em diversos aspetos, estas parecem desmentir aquele, mas dele teremos de partir. Se as fontes da Antiguidade merecem ressalvas, não menos as merecem as fontes de qualquer tempo. Pela crítica, percebemos que o que está escrito não é mais do que o que está escrito, ou seja, a subjetiva expressão de quem conta, condicionada pelo que realmente sabe, pelo que pretende ao escrever ou pelo contexto em que o faz. Quanto ao que realmente aconteceu, jamais o poderemos dizer com total exatidão, sabido que não é humano o dom da omnisciência. Mas o que se conta que aconteceu não deixa de ser interessante, revelando, se não a verdade, os caminhos da mitificação num determinado tempo. Certezas não há, insista-se. Comecemos pelo fim.
Diz-nos Josefo que, ao aperceberem-se da inevitabilidade e da iminência da derrota, os rebeldes judaicos, que desde o início da revolta (66 d.C.) ocupavam Massada, fortaleza erguida por ordem de Herodes, o Grande, no último quartel do século I a.C., decidiram que o suicídio seria mais digno do que a rendição (uma inevitabilidade, menos de mil sitiados contra alguns dez mil sitiantes, entre legionários, auxiliares e escravos). Só serviam a Deus, jamais serviriam aos invasores romanos. Mas, na verdade (na verdade descrita por Josefo, lembremos sempre), só um dos rebeldes realmente se suicidou. Cada homem matou a sua família, dez homens foram designados para matar os restantes homens e, desses dez, um foi sorteado para pôr termo à vida dos outros nove, após o que incendiou os edifícios, para finalmente se entregar à própria espada.
Lenda reavivada
O contexto do dramático desfecho, relatado ou efabulado pelo cronista, é o da Primeira Revolta Judaica contra Roma, iniciada no ano 66 e, para todos os efeitos, esmagada pelas legiões, que incendiaram Jerusalém e arrasaram o Segundo Templo (ou de Herodes), em 70 d.C.. O templo erguido no local de onde ramificaram as três "religiões do livro" (judaísmo, cristianismo e islão), o sítio onde Abraão se prontificou a sacrificar o filho, Isaac (para os muçulmanos, tal aconteceu em Meca e Abraão era Ibrahim). O monte sobre o qual se erguem duas importantes mesquitas, o monte ao lado do qual subsiste, sendo o lugar mais sagrado para os judeus, o muro ocidental (dito "das lamentações"), única reminiscência do templo onde o ainda menino Jesus deu lições aos doutores, o mesmo templo de onde Jesus Cristo expulsou os vendilhões.
Deixemos esta deriva e voltemos ao local que nos interessa. Massada foi, perdoe-se o paralelismo com a criação de René Goscinny e Albert Uderzo, menos do que a irredutível e resistente aldeia gaulesa, apenas o último reduto dos últimos zelotas, que ocuparam a fortaleza e ali se refugiaram e permaneceram durante sete ou oito anos. A história do cerco e do sacrifício coletivo, conhecida há perto de dois milénios, foi relançada na década de 1960, com a intensiva campanha de escavações liderada por Yigael Yadin. Foi a partir daí que o relato do suicídio coletivo ganhou uma aura global, bem como, do outro lado (menos falado, pois é o culto dos mártires que se impõe), o mito dos invasores romanos, que, supunha-se, construíram uma colossal rampa de acesso à fortaleza, milagre da engenharia feito à custa de escravos hebreus.
Ora, os mitos são muito bonitos até a ciência se encarregar de os desmontar, mas é importante conhecê-los e, claro, perceber o que lhes deu força. Desmontá-los não significa apagá-los, pois são parte importante dos próprios processos históricos. E, bem vistas as coisas, nenhuma desmontagem tem força suficiente, neste caso, para apagar o mito.
Afirmação nacionalista
Recuemos pouco. Não vamos agora ao cerco, mas às escavações dos anos 60 e ao homem que lhes deu rosto e ânimo. Já então os investigadores terão sido confrontados com falta de evidências que corroborassem o épico relato de Josefo, isto é, a tese do suicídio. Mas essa tese foi mantida e grandemente amplificada. É fácil perceber (ou, pelo menos, especular) porquê. Massada era, para o jovem Estado de Israel, uma perfeita autojustificação. O mito nacionalista da valentia, da resistência, da fidelidade de um povo ao seu destino mítico ou, para usar uma palavra da moda, da sua inabalável resiliência era perfeitamente representado pela história do cerco de Massada, tal como Josefo a descrevera.
Olhemos por um instante o lado dos invasores, tal como a fonte coeva o descrevia. Decididos a tomar aos zelotas o refúgio invernal de Herodes, o Grande - que ali fizera construir palácios, cisternas, casernas, linhas de fortificação e outras estruturas -, os romanos (a "Legio X Fretensis", um corpo de veteranos sob ordens diretas de Flávio Silva, então governador da Judeia) ergueram oito campos fortificados em redor do objetivo, cercaram todo o monte com uma muralha, que tinha um perímetro de 25 quilómetros e da qual restam vestígios, construíram uma colossal rampa, que permanece a ocidente da fortaleza, a fim de poder chegar com uma torre de assalto às muralhas.
Como nota Gwyn Davies, um professor norte-americano especializado nos trabalhos de campo das legiões romanas, Silva e os seus generais teriam a noção de que, dada a capacidade de armazenamento, tanto de água como de mantimentos, da fortaleza, um cerco passivo (esperar até os sitiados serem vencidos pela fome, pela sede, pelo cansaço) implicaria muito mais tempo do que o que seria suportável ou desejável, pelo que desde logo foi montada uma estratégia de ataque. A muralha atrás referida, estrutura provisória permanentemente vigiada por soldados, era apenas uma medida preventiva, destinada a impedir eventuais tentativas de fuga dos zelotas. A rampa é, ela própria, um elemento central do mito, pois desde o relato de Josefo foi criada a convicção de que a gigantesca estrutura foi construída a partir do nada ou do quase nada, digamos assim, mas a geologia já demonstrou (artigo de Dan Gill na "Nature", em 1993) que a rampa é, essencialmente, a rocha-mãe, que trabalhos de aterro uniformizaram na superfície (daí a deteção, pela arqueologia, de elementos de madeira usados para firmar esse "pavimento"), sem a dimensão bíblica que tinha a ideia de uma rampa construída de raiz.
Essa é, todavia, uma questão eminentemente técnica e a seu modo marginal, atendendo a que o mito de Massada assenta, essencialmente, na heroicidade dos zelotas e não no poderio militar dos romanos.
Desmentidos e confirmações
Voltemos, então, ao relato de Josefo, no qual se percebe, como atrás referimos, a ordem por que os zelotas perderam a vida. Cada homem matou a sua família e, entre esses, dez foram sorteados para matar os restantes, sendo um desses dez sorteado para perpetrar o desfecho final: "Os nove foram degolados, e o último sobrevivente solitário, depois de examinar a multidão prostrada, para ver se, no meio do caos, ainda havia alguém que precisasse da sua mão, e descobrindo que todos estavam mortos, incendiou o lugar e, em seguida, reunindo a força que lhe restava, trespassou o próprio corpo com a espada limpa e caiu ao lado da sua família".
Evidentemente, embora não possamos avaliar o grau de fantasia deste relato, parece evidente que ele terá de existir, mais ou menos elevado, atendendo a que o cronista não só está a relatar acontecimentos que não presenciou, como está a enunciar detalhes de algo de que não sobrou qualquer vestígio documental nem possível descrição testemunhal, pois todas as testemunhas estavam mortas, em particular o último sobrevivente, isto é, o único que terá vivido os acontecimentos até ao derradeiro instante. Nada disso é suficiente, sublinhe-se, para dizer que o suicídio coletivo, se assim lhe podemos chamar, ocorreu, seja em que circunstâncias. A única coisa clara, como a posteridade demonstrou, é que esta é uma história a que ninguém fica indiferente, ou seja, com todos os ingredientes para ser inscrita na mitologia de um povo ou de uma nação.
Quando Yigael Yadin empreendeu, de 1963 a 1965, a grande tarefa de revelar Massada ao mundo, o que daí resultou foi, em boa parte, a confirmação do relato de Josefo. Por exemplo, foram recolhidos no sítio arqueológico 11 fragmentos de cerâmica, cada qual com um diferente nome inscrito, sendo um dos nomes o de Eleazar Ben Ya'ir, o líder dos zelotas. Presumiu-se, então, que tais fragmentos poderiam ter sido usados no sorteio final, que determinou qual o homem que mataria os seus últimos companheiros, antes de pôr termo à própria vida.
Na realidade, questionar a história do autor judaico-romano do primeiro século da nossa era nunca terá sido uma prioridade para os arqueólogos da década de 1960, embora, naturalmente, muitas dúvidas surgissem. E tais dúvidas estiveram bem presentes nos trabalhos feitos após a morte de Yadin, em 1984, a fim de completar a interpretação do sítio. Entre as dúvidas levantadas pela confrontação entre a arqueologia e a crónica de Josefo contava-se, por exemplo, o facto de não haver vestígios de uma muralha de madeira e terra que os sitiados terão construído do lado onde desembocava a atrás referida rampa, muralha essa que os romanos incendiaram, A isso era associada outra dúvida: como poderiam ter os zelotas, isolados no topo de uma elevação no meio do deserto, arranjar madeira para construir essa paliçada?
Em artigo publicado na "Biblical Archaeology Review", em 1991, Ehud Netzer propôs e deu como demonstrada uma explicação, que, por sua vez, serviu para clarificar outra perplexidade com que se deparavam os arqueólogos: embora o relato de Josefo dê conta de que o último sobrevivente incendiou todos os edifícios antes de se suicidar, a verdade é que muitos edifícios não apresentavam vestígios do fogo; aliás, salas ardidas confrontam com outras que parecem não ter sido tocadas pelas labaredas. Essa explicação, espécie de ovo de Colombo, é a de que os zelotas terão desmantelado as vigas de madeira de muitos dos tetos para constuir a estrutura defensiva e, com isso, muitas salas e edifícios ficaram sem a matéria inflamável que seria necessária à propagação das chamas. A ideia de que todos, ou quase todos, os telhados foram desmantelados foi reforçada por vestígios de acampamento dos romanos no interior do recinto, ou seja, montado após a tomada da fortaleza, algo que seria desnecessários se os legionários tivessem construções cobertas onde se pudessem instalar.
Netzer, através de uma reflexão profunda sobre os achados, apresenta uma proposta sólida acerca dos usos que, ao longo de sete anos, os zelotas foram dando à grande quantidade de edifícios que Herodes mandara erguer naquele tão inacessível sítio. E dá mais sentido à admissão de que, intercalada com alguma efabulação, como normal é na cronística, muita realidade poderá haver no relato feito por Tito Flávio Josefo. Continuam a não ser conhecidos, porém, testemunhos arqueológicos que apoiem com segurança a narrativa do suicídio coletivo.
Voltemos à campanha dos anos 60. O arqueólogo David Stacey, que trabalhou na equipa liderada por Yigael Yadin, citado num artigo publicado em 2013 pelo jornal britânico "The Guardian", não hesitou em dizer que a história "foi completamente inventada", na medida em que "não há qualquer prova que a corrobore". Outros especialistas, como o arqueólogo israelita Guy Stiebel, estão convencidos de que o suicídio efetivamente ocorreu, mas sem qualquer propósito simbólico, ou seja, apenas porque era algo que fazia sentido à luz da mentalidade da época. Mas a história patriótica era, então, uma das bandeiras agitadas pelo chefe da expedição. Note-se que Yadin, além de ser o mais eminente arqueólogo de Israel (o seu trabalho mais relevante foi o relacionado com os manuscritos do Mar Morto), era também político e soldado (chegou a ser vice-primeiro-ministro e foi chefe do Estado Maior das Forças Armadas israelitas). Ora, como já o sugerimos, havia à época um interesse patriótico na história dos zelotas em Massada, tanto pela necessidade de uma mitologia nacionalista como pela ferida reaberta na sociedade israelita pelo julgamento do nazi Adolf Eichmann, em 1961.
Mas seria a história de Massada um motivo de orgulho patriótico assim tão grande? No momento, sim, mas a contestação foi-se tornando cada vez mais evidente. Afinal de contas, trata-se de glorificar um grupo que, ao invés de lutar até à morte, preferiu a morte sem luta. Ou então, do ponto de vista dos setores esquerdistas de Israel, Massada (mito ou realidade, não importa) é a demonstração das consequências do fanatismo religioso. E Yadin, em que acreditava? Ou, melhor, o que o movia? Podia ser o interesse nacionalista, claro, mas também algo mais prosaico. A noção de que uma boa narrativa fazia aumentar o interesse pelas escavações e, consequentemente, estimular o financiamento das mesmas. E a história de Josefo é uma grande história.
