
Nova criação de Marco Ferreira da Silva marca arranque da programação no Teatro Municipal do Porto
O bisonte é um animal forte, encorpado, pesado, de juba viçosa e porte exuberante. É veloz e a visão engana - não é um predador. Geralmente, é predado por lobos. "Bisonte" - robusto na aparência, frágil na essência - inspira a metáfora trabalhada por Marco da Silva Ferreira na sua terceira criação, que estreou esta sexta-feira, no Teatro do Campo Alegre, no Porto - e que repete este sábado, às 19 horas. Em março segue para Bruxelas; em abril apresenta-se no Teatro São Luiz, em Lisboa.
Que lugar íntimo se esconde atrás de uma armadura? A peça, ancorada em dados biográficos do criador e construída para seis bailarinos - "mais de seis é sempre muito", diz - é uma peça "emocional, à flor da pele, que salta entre a histeria e a melancolia" numa reflexão sobre uma sociedade "hipermasculinizada", cujas relações parecem invariavelmente ditadas por estereótipos e pelo poder. "Que comunidades são estas que ainda se medem pelo grande, forte e rápido? Pelo poder, sexo e controlo?", questiona.
Artista associado do Teatro Municipal do Porto nos últimos quase dois anos (de setembro de 2017 até julho próximo), Marco da Silva Ferreira falou com o JN em setembro passado, na Bienal de Dança de Lyon, onde apresentou o espetáculo "Brother". O trabalho resgatava danças tribais, usando o corpo como um "recoletor de memórias", para demonstrar que "ninguém vai neste barco sozinho". Explorava o pulsar comum, a rede de emoções, códigos, linguagens e símbolos que podem nascer de um coletivo.
O coreógrafo volta a usar o coletivo, a linguagem urbana e contemporânea, que traça a identidade do seu percurso, mas difere na construção do espaço cénico. Normalmente, propõe "espaços abstratos, brancos, não literais, espaços potenciadores, que permitem olhar para os corpos e não para o lugar". Para "Bisonte", que enceta uma espécie de rutura com os trabalhos anteriores, até porque nunca cede à tentação do Lado B - foi necessário "criar um espaço íntimo, com lugares de destaque e com tridimensionalidade".
Tudo nesta criação é mais literal. Mas é também aí, no espaço onde tudo sucede, que continua a revelar-se outra marca de água do seu trabalho: a intensidade. "Mesmo quando proponho um movimento fluido, não bruto, ele está carregado de tensão e de intenção. Não é violento, não há perigo nem vertigem da queda. É sempre uma intensidade em que a dor vem misturada com prazer".
Desta vez, a intensidade procura a intimidade, aquilo que só se vê quando se olha para dentro com a pele e não com o ego. Ou o preconceito. Desta vez, num elevador de emoção que vai do samba ao Prince, o desenho surge sobretudo no um-para-um, trilho íntimo em que vai desfazendo a convenção e o género. Em cena há "um corpo muito viril e pujante" que se vai apetrechando com armaduras - físicas, emocionais, psicológicas - para denunciar uma intimidade "carregada de automatismos e estereótipos que levam à sua falência". Dito assim pode não parecer, mas Bisonte é sobre o romantismo que persiste em cada um de nós.
