
Francisco Manso fala do seu filme "O Nosso Cônsul em Havana", já nas salas, sobre o tempo que Eça de Queirós passou como diplomata em Cuba.
Já exibido em série de 13 episódios na RTP e agora estreado em sala na sua versão de longa-metragem, "O Nosso Cônsul em Havana" acompanha o período que Eça de Queirós passou em Cuba como representante da coroa portuguesa, tendo tido um papel importante na defesa dos trabalhadores chineses, chegados via Macau, alvo de um tratamento praticamente esclavagista pelos fazendeiros, sob o olhar complacente das autoridades coloniais espanholas.
Até que ponto este episódio da vida de Eça de Queirós estava suficientemente documentado?
Muitas pessoas nem sabem sequer que o Eça foi diplomata. Havana foi a sua primeira situação consular. Sobretudo esta parte de defender os contratados chineses é muito especial. Lopes de Oliveira, um republicano muito ligado ao ensino, escreveu muito sobre o Eça e disse qualquer coisa como: "a campanha dura e gloriosa de Eça de Queirós em Havana é uma das mais belas páginas da moderna diplomacia portuguesa."
Em que consistiu exatamente essa ação?
Portugal tinha abolido a escravatura em 1869, mas em Cuba ainda existia. O Eça bateu-se contra isso. Os chineses trabalhavam nas plantações de cana-de-açúcar. Vinham da China via Macau, os ingleses tinham fechado o porto de Hong Kong, e quando chegavam eram obrigados a ter um contrato de oito anos, e depois nunca ganhavam o suficiente para voltar à terra deles, vendo-se obrigados a renovar o contrato.
A história da jovem chinesa é a parte de ficção...
Houve, na verdade, situações em que o Eça foi confrontado com a necessidade de passar cédulas porque se não iam cair nas mãos de pessoas sem qualquer escrúpulo. Criámos então esta miúda chinesa que chega a Cuba disfarçada de rapaz. Há um marinheiro que simpatiza com ela e a coloca nas freiras Clarissas, para não ser apanhada nas garras daquela grande escravocrata da ilha, um basco que realmente existiu.
Normalmente a estratégia de divulgação passa pela exibição do filme e só depois da série na televisão, mas aqui foi ao contrário.
Foi uma opção. Apercebi-me da importância que o Eça de Queirós ainda tem em Cuba. O grande historiador de Havana, o Eusébio Leal, interessava-se muito pelo Eça de Queirós. Ainda há um grande café em Havana onde ele ia. Um filme tem um público diferente. Felizmente a RTP tem apostado muito nas séries de caráter histórico. Mas a ideia de fazer um filme veio porque eu tinha muito material.
Este gesto do Eça é um pouco o de um Aristides avant la lettre...
É verdade. Mas enquanto o Aristides está muito mais próximo de nós, acaba por ser menos conhecida esta parte da defesa que o Eça fez daquela gente, que não tinha ninguém que os defendesse. O Eça podia até passar ao lado da situação, mas teve esta coragem enorme e esta visão humanista, muito antes de tempo. O Eça foi um precursor da defesa dos direitos humanos. Na altura não havia sindicatos nem ninguém que defendesse os trabalhadores.
Além do Aristides e do Eça, já fez filmes sobre o último condenado à morte ou sobre o assalto ao Santa Maria. A História foi algo que sempre o fascinou?
Portugal tem uma História extraordinária. Em quase 900 anos de História temos episódios e personalidades incríveis. Temos pessoas que fizeram ruturas corajosas com o seu tempo. O Eça participou nas conferências do Casino, em Lisboa, com o Antero, que tinha aquela visão do socialismo. O Eça fez a última conferência, sobre o realismo literário. O Eça tem uma escrita contundente e crítica da sociedade e contribuiu para aproximar Portugal do que se passava na Europa. Nós estávamos muito longe de tudo.
O Elmano Sancho foi a primeira escolha para fazer de Eça?
O Elmano era um ator que eu achava muito talhado para esta personagem. Fez uma pesquisa muito importante sobre a vida do Eça nesse período e tivemos longas conversas. O Eça foi um grande sedutor, chegou a Cuba e teve logo duas amantes, vestia-se de uma forma exótica, fumava com um certo aparato. E era extremamente culto, falava sobre tudo. O Elmano apanhou muito bem esta figura.
Onde é que a série foi filmada?
Há umas partes filmadas em Cuba, mas que aparecem pouco no filme, mas acabei por filmar muitas coisas em Portugal. A taberna foi feita em Castelo de Vide. O hotel das termas de São Pedro do Sul foi aproveitado para o Casino de Havana. E filmámos muitas coisas também nas antigas termas de Entre-os-Rios, que tem exatamente o ambiente daquela época. Era impossível filmar tudo em Havana, não tínhamos dinheiro para isso.
Estrear agora é também um ato de resistência...
Já tínhamos decidido que a estreia ocorresse nesta altura. Ninguém sabe o que vai acontecer, quando é que isto vai voltar a ser o que era. Achámos que não fazia muito sentido estar a mexer nas datas Claro que vivemos num momento extremamente delicado, onde as pessoas têm legitimamente algum receio. Mas os cinemas são sítios seguros, têm espaço, as pessoas não estão ali umas em cima das outras. A vida continua, não nos podemos render a este inimigo invisível.
