'Bebés reborn'. Causas e perigos de se ser mãe de um boneco, segundo especialista
Têm pele frágil e são fruto de um minucioso trabalho para os tornar os mais fiéis possíveis a um recém-nascido, sendo, afinal, um boneco. Os "bebé reborn" têm ganhado vida inesperada e polémica. Psicóloga explica o caso, lembra que há relações com animais de estimação que tocam esta fronteira e revela o que fazer
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Os bonecos que reproduzem bebés hiperreais estão agora no cento da polémica. Os 'bebés reborn' conseguem reproduzir, com um nível de detalhe absoluto e através de trabalho artesanal, um recém-nascido, e tudo com traços escolhidos por encomenda.
Se para alguns se trata de objetos de coleção, que podem custar milhares de euros, outros - sobretudo mulheres - têm vindo ser notícia por darem humanismo inesperado a uma peça que é, afinal, feita de silicone, com olhos de vidro e fios de cabelo colocados à mão, um a um. Em Portugal, há já quem faça este tipo de bonecos sob encomenda ou é possível adquiri-los online.
No Brasil, uma mulher foi ao hospital com o 'bebés reborn' para exigir uma avaliação médica e por considerar que este estava doente, há casos de quem usa estes “bonecos” hiperrealistas para passar à frente de filas e fala-se já em disputa de guardas parentais de 'bebés reborn' e das suas contas de redes sociais, devido ao valor dos seguidores que têm. Todo um novo universo que já está a levar o Brasil a apresentar diplomas para multar quem usa estes bonecos que parecem bebés para obter benefícios.
Mas, como se cria esta ligação? A psicóloga Carolina de Freitas Nunes começa por pedir empatia para quem chega a este ponto de relacionamento com um boneco e lembra que há laços com animais de estimação que não distam deste tipo de afeto.
“Ainda não acompanhei nenhum caso específico com "bebés reborn", mas tive uma paciente que atribuía ao seu cão o estatuto de filho bebé de forma muito intensa e rígida. Levava-o num carrinho de bebé, usava porta-bebés ao peito, comprava material típico de puericultura, desde biberões a roupa de recém-nascido e, mais do que isso, exigia que os amigos tratassem o cão como “o seu filho’”, revela à Delas.pt. A especialista recorda que a paciente sentia um “profundo desrespeito” quando alguém tratava o seu animal por “cão” ou “bicho”, mostrando uma ”rigidez emocional e simbólica que revelava uma necessidade não resolvida de maternar, provavelmente ligada a perdas anteriores, ausência de filhos, e um quadro de solidão profunda”, com o animal a ter “uma função simbólica e nesse sentido”.
O paralelo entre esta realidade dos animais de estimação e a dos “bebés reborn” é, para a especialista, mais próxima do que o que possa parecer: “uma tentativa inconsciente de criar uma relação segura, previsível, emocionalmente compensatória, num mundo que lhe parecia inseguro e vazio”, explica Carolina de Freitas Nunes.
Lutos, perdas de bebés, infertilidade e solidão
A procura por estes bebés pode, então, ser encaminhada por muitas razões. ”Lutos muito difíceis, como perdas de bebés, abortos espontâneos, ou mesmo infertilidade” e “solidão, muitas vezes invisível” podem ser causas que empurram as mulheres a “encontrarem nos 'reborn' uma companhia emocional”.
“Também há quem se sinta mais segura com um bebé que não exige, não chora, não cresce e isso pode representar uma tentativa de controlo sobre uma vida que lhes parece caótica ou imprevisível”, acrescenta a especialista, vincando que nem sempre este apego “é sinal de doença”. Contudo, passa essa fronteira quando “o vínculo ao 'reborn' substitui completamente a relação com o mundo real, aí é importante intervir”.
Não sendo vista como uma dependência clássica como a do álcool ou a do jogo, Freitas Nunes fala num “objeto de substituição afetiva, o que chamamos um objeto transicional”. “Como quando uma criança se apega a um peluche para adormecer, só que aqui, essa função emocional se prolonga ou cristaliza na vida adulta. Em quadros mais graves, pode ser parte de uma perturbação dissociativa, ou mesmo de um delírio, mas nem sempre. Às vezes, é apenas uma tentativa de segurar algo que está a desmoronar por dentro”, especifica a psicóloga.
O problema "não é o boneco", é o espaço que "ocupa"
Por isso, importa “escutar sem julgamento”. "Aquilo que pode parecer estranho ou até exagerado à primeira vista, muitas vezes esconde uma dor antiga ou um vazio afetivo muito real. A relação com o 'reborn' pode funcionar como um mecanismo de proteção, uma forma de manter alguma ligação emocional num momento de perda, solidão ou fragilidade psíquica. O papel do psicólogo é perceber o que está por trás: há uma perda gestacional? Uma depressão? Uma dissociação da realidade? É isso que vai orientar o tipo de intervenção”, refere a psicóloga.
Se se confronta com alguém próximo com este tipo de ligação afetiva, Carolina de Freitas Nunes pede para que não se “confronte ou ridicularize a pessoa”, devendo “agir com empatia”. “Pode fazer perguntas simples como: “Esse bebé ajuda-te a lidar com alguma coisa difícil?”, ou “Gostavas de conversar com alguém sobre o que ele representa para ti?”. E depois, sugerir ajuda de forma tranquila: “Há psicólogos que trabalham estas situações, pode mesmo ajudar-te a sentir-te mais leve”. O objetivo não é tirar o boneco, mas compreender o que ele está a ocupar”, sintetiza a psicóloga.