Formações de juízes em processos de violência contra as mulheres devem ser "obrigatórias" e tribunais de Família e de Crime não podem pôr vítimas em novo risco, pede a CIG no dia em que relatório europeu traz retrato negro de Portugal e que se cumprem 25 anos sobre aprovação de crime público para violência doméstica
Corpo do artigo
“Tivemos uma magistrada da Grande Lisboa que pediu para que a vítima fosse acolhida numa casa-abrigo perto da morada do agressor porque ele tinha saudades da criança”. Este é um exemplo apresentado por Marta Silva, a coordenadora do departamento para a Violência Doméstica e de Género, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e que chega na sequência do relatório europeu que revela amplas fragilidades o sistema judicial português no combate à violência contra as mulheres, em Portugal.
O documento do Conselho da Europa (CE), resultado de uma visita e estudo feitos a Portugal em junho de 2024, foi revelado esta terça-feira, 26 de maio, no exato dia em que se cumprem 25 anos da Violência Doméstica como crime público.
Os resultados revelam uma realidade negra e que não surpreendem a CIG. ”O relatório espelha o que nos é reportado quase diariamente por quem está na primeira linha de intervenção, pelas equipas, nas casas-abrigo, por aquilo que vamos sabendo por parte de pessoas que dão voz a esta realidade”, afirma Marta Silva.
Ao detalhe, o documento denuncia o facto de “as vítimas serem pressionadas a aceitar a suspensão do processo, dado que pode ser uma ferramenta eficiente para o sistema judicial dispensar um elevado número de processos sem ir a julgamento” e refere que “há tendência generalizada entre o poder judicial de atribuir grande importância à proteção da família como um todo, incluindo as famílias marcadas pela violência, em detrimento dos direitos e interesses das mulheres vítimas e dos seus filhos”.
Os especialistas do CE apontam ainda o dedo a “atitudes patriarcais persistentes entre alguns membros do sistema judicial, o que tem consequências negativas para as vítimas de violência”, na sua larga maioria mulheres. Estas são depois retratadas muitas vezes pela justiça como “manipuladoras, superprotetoras ou ciumentas”. São, igualmente, “acusadas de instrumentalizar os filhos contra o pai (abusivo)” e, asseguram, este quadro mental acaba por influenciar “o raciocínio judicial, pareceres psicológicos e de outros peritos, e decisões judiciais em todas as instâncias”. “A relutância dos tribunais de família e menores em restringir [ao agressor] os direitos parentais em casos de violência também se deve, em parte, a esse fenómeno”, lê-se no documento.
“O Ministério da Justiça, Ministério Público (MP) e Magistratura têm uma reflexão a fazer e estratégias a definir”, diz a responsável pela pasta da violência contra as mulheres na CIG, que considera que o documento, apesar de abordar os progressos que têm sido feitos, vem pôr a nu a fragilidade “no acesso das pessoas aos serviços e designadamente aos serviços de Justiça”.
"Magistratura oficial tem falta de indicações"
Marta Silva destaca o facto de “o grupo de peritos ter encontrado muitas decisões tomadas com base nas conceções de família e papéis de género por parte dos magistrados e magistradas, não parecendo haver grande diferença entre o decisor ser homem ou mulher, nestes casos” e amplas fragilidades na “comunicação entre processos de família e menores conflituantes com decisões do crime”. Neste último ponto, por exemplo, há tribunais que até condenam um agressor por violência doméstica e a afastamento da vítima, mas a decisão arrisca depois ser ignorada em sede de Tribunal de Família, que por vezes obriga vítima e agressor a continuarem a conviver ao abrigo de um acordo parental que ignora a possibilidade de perigo. “Preserva-se a célula familiar em detrimento da proteção da vítima”, vinca a coordenadora em declarações à Delas.pt. E acrescenta: “Os magistrados são educados no mesmo contexto cultural que o resto da população, há um trabalho grande a fazer ainda”, argumenta.
Na verdade, há já alguns aos que os magistrados podem fazer cursos adicionais para melhor trabalharem as questões de violência contra as mulheres, mas Marta Silva lamenta que sejam “facultativos” e que só participem quem “já está sensibilizado para estas matérias”. “Temos é que garantir que esta formação é obrigatória”, insiste Marta Silva.
E se “as orientações que a Procuradoria-Geral da República tem feito para o MP tem melhorado muito a atividade nesta matéria”, “a magistratura oficial tem falta de indicações, o que se faz sentir na tomada de decisão”, lamenta a coordenadora do núcleo da CIG.
Decisões judiciais "vêm indicar que a resposta penal é branda"
“Há uma desconformidade entre os processos de família e menores e os crime, há uma aplicação maioritária de suspensões provisórias do processo e suspensões de execução da pena, o que, em termos daquilo que é percebido pela vítima, pela sociedade em geral e pelo agressor, vem indicar que a resposta penal é branda”, alerta Marta Silva.
Falhas que constam de um relatório sobre o qual a coordenadora do núcleo também vinca que vem dizer que “Portugal não tem grande necessidade de fazer alterações legislativas”, mas deve, entre outros elementos, “garantir celeridade de processos”. Sobre o documento, Marta Silva corrige “duas imprecisões”: “O relatório diz que para receber apoio da rede nacional é preciso fazer queixa, o que não é verdade, e diz que estamos abaixo no número de vagas de acolhimento em casas-abrigo. Oram em Portugal temos mais cem vagas do que o racio que o CE aponta como um valor por cada dez mil habitantes”, conclui.