Fugiu do Afeganistão aos sete anos. Órfão, percorreu três países a pé. Foi vendido a traficantes humanos, esteve preso e foi agredido. Mudou-se para Portugal, tornou-se campeão nacional de boxe e vai combater, este mês, por um lugar Jogos Olímpicos, numa preparação contrarrelógio para chegar a Tóquio.
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Nascido no Afeganistão no final dos anos 90, Farid conheceu de perto a guerra e a violência. Perdeu o pai quando era muito novo e a mãe foi perseguida por motivos religiosos, sendo obrigada a deixa-lo à guarda de amigos. Aos sete anos vivia em Puli Khumri, uma cidade destruída, e com o futuro incerto. Rejeitado pela família adotiva, saiu do Afeganistão com um grupo de 200 pessoas, foi vendido a traficantes humanos e percorreu a pé três países para chegar até à Turquia, porta de entrada para a Europa.
"Muita gente faleceu no caminho. As montanhas eram secas, o caminho muito duro, com muito frio à noite e muito calor durante o dia. Não havia água, não havia comida, mas eu nunca desisti de chegar à Turquia" referiu, em entrevista ao JN. Na Turquia, prometeram-lhe passagem para a Europa, se levasse "sacos de açúcar" na mala. Foi intercetado pela polícia e detido. Os sacos continham na verdade cocaína.
Numa cadeia turca, foi maltratado por outros prisioneiros, que o tentaram escravizar. Revoltou-se, "nunca tive pensamento de escravo", sublinha, mas devido a esta atitude destemida foi várias vezes agredido. E foi nesta adversidade que começou a encontrar um rumo para a vida.
"Encontrei um amigo que praticava artes marciais e decidi começar a praticar também para me conseguir defender. A partir daí comecei a ter sonhos e a traçar objetivos de ser campeão e sobretudo de salvar a minha vida. Comecei a treinar muito, mas no caminho encontrei dificuldades. Não tinha dinheiro e tive vários problemas de saúde", explica-nos.
A paz em Portugal
Farid Walizadeh estava a viver num centro de refugiados turco, quando, em 2012, chegou a carta que iria mudar a sua vida, concedendo-lhe estatuto de refugiado em Portugal. Do nosso país, o afegão sabia apenas que ficava ao lado de África e que havia um certo jogador do Real Madrid que era português: Cristiano Ronaldo. Já instalado no Centro de Refugiados de Lisboa, começou a estudar à tarde e a trabalhar num hotel à noite para ganhar algum dinheiro.
"Sempre foram muito simpáticos comigo. Algumas pessoas eram mais frias porque do nada aparece uma pessoa assim a pedir apoio... mas isso não quer dizer nada. 90% das pessoas foram muito simpáticas comigo, nunca fui desrespeitado e nunca me senti como um estrangeiro", afirmou.
Foi no boxe que Farid encontrou uma forma de relaxar e de o ajudar a dormir, depois de anos de noites em sobressalto entre o Afeganistão e a Turquia. Com a ajuda do treinador Paulo Seco, descarrega toda a energia negativa e sente-se melhor no dia-a-dia. Meses depois de ter começado a treinar esta modalidade, ainda em 2013, tornou-se campeão nacional de cadetes na categoria dos 57 kg.
"O boxe é a sensação de família. Isto não é só boxe, eu não levo o ginásio só como um ginásio, é algo mais do que isso. As pessoas que mais trabalham connosco são aquelas que gritam e se chateiam, mas no final do dia saímos bem porque deixamos lá toda a energia má", afirmou.
Depois de se tornar campeão nacional de boxe, Farid foi condecorado com a medalha de ouro comemorativa do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entregue pela Assembleia da República. "Não tive de trabalhar para ela", afirma, salientando que as dificuldades que enfrentou e lhe valeram a distinção foram apenas parte da sua vida. Já no boxe, o caso foi diferente. "Para ser campeão, trabalhei, para receber o prémio não", disse.
Mas o boxe não é a única paixão na vida de Farid. A destruição do Afeganistão inspirou-o, por contraste, a perseguir o sonho de ser arquiteto e construir casas, por que "destruir é fácil, o difícil é construir". E essa é a vida que quer ter em Portugal depois do boxe, já que o regresso ao país-natal não está nos planos. A paz é apenas uma miragem para quem lá mora.
Sonho olímpico
Por estes dias, os objetivos de Farid passam pelos Jogos Olímpicos 2020, para os quais treina há um ano. Recebeu uma bolsa do Comité Olímpico Português e poderá garantir presença em Tóquio, ainda este mês, no torneio de qualificação olímpica. Irá representar a equipa de refugiados, criada em 2015 pelo Comité Olímpico Internacional (COI).
Sempre ao lado do afegão, está Paulo Seco, que há seis anos orienta Farid Walizadeh enquanto treinador, mas também como amigo. "É um percurso difícil, as pessoas não têm a noção dos sacrifícios que um atleta faz para atingir os seus objetivos. Não há fins de semana nem feriados. Ao fim de semana estamos a combater e aos feriados a treinar, não há horário das 9 às 18 horas. Há compromissos que devem ser honrados. Se um atleta quer ser olímpico tem de trabalhar muito, não é só sonhar", contou o treinador.
Mais difícil ainda é conseguir fazer uma preparação em tempo recorde para alcançar o objetivo olímpico. Um "processo dificil" de cumprir em apenas 10 meses, já que a preparação para os jogos "dura em média cinco anos". "Se me disseres que vamos competir em 2024, as coisas vão-se fazendo. Mas foi-nos criado o objetivo de em 10 meses fazer a preparação. Então temos de correr atrás do tempo".
A história de Farid vai-se espalhando um pouco por todo o lado, pelos jornais e pelas palestras que dá em escolas e univerisidades, contando a sua história de vida. Em troca, recebe cartas e telefonemas a agradecer o exemplo de superação.
"Ele tem mudado a vida de muita gente com a sua história. Não é só um atleta de boxe, é mais além. Ainda esta semana recebeu um quadro a agradecer a inspiração recebida graças à sua história. A pessoa estava com depressão e ele deu-lhe força e ânimo para viver. As pessoas, maior parte portuguesas, pensam: se ele aguentou o que aguentou, quem sou eu para me ir abaixo? Ele fica sensibilizado com esses gestos", explica Paulo Seco, que destaca as virtudes dentro e fora do ringue de Farid.
"Paulo, a carne é tua o osso é meu", costuma dizer Farid, numa expressão enigmática, mas que agrada muito a Paulo Seco, porque lhe garante que até a pele vai ficar no ringue, na busca por mais um objetivo.