Louzantrail juntou mais de 1600 atletas em trilhos que são quase todos antigos caminhos de gentes da serra das aldeias de xisto.
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O banco fica ali a uns menos de quatro quilómetros do empedrado da zona histórica da Lousã, de onde partíramos ao som de uma contagem decrescente havia já tempo suficiente para estar com menos uma camada de roupa. É um toro de madeira, gordo e rijo, com as letras R.M., esculpidas e preenchidas a amarelo. Ao lado, outro toro igualmente poderoso, P.J., ambos a olhar a ribeira zangada que corre lá em baixo. Parece-nos, a nós que julgámos ser velozes, que ali se pararia para dois dedos de conversa, não estivesse o nosso fôlego já entregue ao criador há já uns valentes milhares de metros. Subimos mudos e quedos, em fila lenta, porque isto das corridas concorridas em trilhos apertados é mesmo assim, seguimos todos ao ritmo do mais lento e isso chega a ser bonito (os da frente já vão sabe-se lá bem onde).
Estamos na última das provas do Louzantrail 2023, uns curtos 18 km (o relógio apontou quase 20 no fim...), e a beleza disto é que sabemos que estamos a fazer exatamente aquilo que os heróis das distâncias longas já fizeram, naquele dia e no anterior, porque todas as provas encaixam nos mesmos percursos. E isso dá-nos aquele ânimo: não somos atletas, mas pisamos os mesmos terrenos. Até à meta. Porque correr ali - e não somos nós que o dizemos, é o vencedor da maior distância, 43 km de sofrimento, parabéns Dário Moitoso - é um parte-pernas como há poucos em portugal. Tudo sobe, tudo desce, raros são os planos e quando os atingimos estamos tão derreados que nos parecem o Evereste.
O Trilho dos Moleiros, esse do P.J. e do R.M., sejam eles quem forem, seria um daqueles usados por gentes de antanho para quem trail era necessidade. É de uma beleza difícil de descrever, com pontes de troncos a galgar a ribeira à cata do caminho "mais fácil", tudo isto são degraus naturais. Diria Dário: "As subidas nunca mais acabam" e atrás delas, obviamente, há de haver descidas que são como elas, "íngremes", e que "destroem as pernas". Esta subida em concreto põe-nos a vencer mais de 600 de desnível positivo em coisa de seis quilómetros. Como seria vencida por esses tais moleiros. O trilho foi preparado pelo Montanha Clube Trail Running da Lousã, esse grupo de amigos que se fez grande e decidiu partilhar com o Mundo o segredo que se ergue nas costas da sua histórica vila, criando o Louzantrail. E porque são uns brincalhões, pintaram logo ali a abrir a "pedra dos desejos". Se o desejo era aviar aquilo num instante, o génio da pedra fez orelhas moucas. Se o desejo era viver as "emoções" do slogan da prova, então estava lá, atento.
Para que fique claro, somos da cauda do pelotão, daquele sítio que até dá para fotografar um arco-íris porque o único tempo que nos tolhe é o de chegar a horas de tomar banho antes de o hotel achar que já estamos a abusar do late check-out (conseguimos, à justa).
Na Serra da Lousã, a emoção está num banco de madeira à beira trilho, está num bosque sem eucaliptal, perfeito na sua originalidade e agora atapetado da cor palha da folha caduca. A emoção está naquele momento em que uma parede de terra nos revela, lá em riba, uma parede de xisto, a do princípio de uma das aldeias que dão popularidade a estes montes. Casal Novo, cremos, sem certezas, estamos turvados do esforço.
Atrás da paredes arranca-se para uma das escadarias que foram a vida ancestral de todos quantos criaram aqueles paraísos aconchegados no regaço da serra, porque aqui, já o dissemos, tudo desce e tudo sobe.
A emoção está em descobrir que chegámos às "letras" que todos fotografam e que, por isso, não vamos fotografar, preferindo dedicar esse tempo a trincar tomate com pedras de sal. A emoção está em entrar no maravilhoso Talasnal, cumprir mais escadas e, no cimo das últimas, alguém nos ler o nome no dorsal e nos convidar a trincar chouriço e a deglutir um shot de vinho tinto. Pareceu-nos o melhor chouriço do Mundo, saucisson sec como só os franceses o sabem fazer, mas estamos numa aldeia de xisto e o vinho é mesmo português. Emoção é estar nisto, a sorrir porque é o fim da subida (quer dizer, mais ou menos), e sentir o aroma dos cozinhados da Ti-Lena, o que não daríamos para nos enfiar naquela sala de jantar com borralho e repasto do bom.
Emoção é reconhecer a Levada da Ermida que nos há de mostrar, ora, a Ermida lá longe, e conduzir ao trilho que nos entrega à Central Hidroelétrica da Ermida e ao seu pastor alemão bonacheirão. Recordámos que já por cá trilhámos na era em que havia ali um candeeiro de cristal, a altura era ainda a do defunto UTAX, esse portento de corrida de montanha que conseguia juntar à roda de um desígnio os vários municípios da Serra da Lousã. Foi emoção, também então, ouvir o tilintar dos pingarelhos do inusitado lustre, abanado pela brisa.
Emoção é vencer a última subida, sabemos que é a última porque este é dos percursos pedestres (PR) mais percorridos da Lousã, e admirar o Castelo de Arouce que só desta vez descobrimos ser de Arouce, o nome da ribeira que se faz praia fluvial ali aos pés. Emoção é não ter pena de não chegar a tempo de almoçar no Burgo porque uma placa triste pendurada à porta avisa que está "esgotado". É entrar na Lousã e passar à porta do Palácio da Viscondesa do Espinhal (também dito "dos Salazares) e não nos sentirmos impelidos a atirar a toalha ao chão e mandar a medalha de finisher às urtigas, porque atrás daquela fachada centenária se esconde o nosso futuro banho, para lá da história que mete invasões francesas e luxo exclusivo da nobreza do século XVIII.
Chegamos à meta sujos e exaustos, mãos enegrecidas pela luta contra a serra, rosto borratado e o cronómetro a marcar ligeiramente menos do que o dobro do tempo feito pelo primeiro homem, Nélson Costa, e uma distância substancial da primeira mulher - pudera, era Eli Dvergsdal, norueguesa campeã nacional dos 3000 metros e já vencedora da terrível Zegama em 2019.
Emoção é saber que a seguir a isto (e ao banho no luxo da nobreza), haverá uma chanfana de cabra velha à nossa espera, contando que os mais de 1600 inscritos e acompanhantes que encheram a Lousã no fim de semana não tenham dado conta dos stocks desse pitéu que é como nós: demorado, lento, apurado.
Nota: O açoriano Dário Moitoso (4.36 horas) e a belga residente em Portugal Joke Descheemaeker (recorde de prova em 5.32 horas) venceram os 43 km. Na prova dos 29 km, a primeira do circuito ibérico Golden Trail National Series, o espanhol Miguel Rubio correu durante 2.47 horas e a também espanhola Ainara Uribarri levou o pódio feminino com 3.33 horas. O primeiro lugar dos 18 km, como foi dito, coube a Eli Dversgdal (1.59 horas) e a Nélson Costa (1.48 horas). A prova mais curta (12 km) foi vencida pelos júniores Lourenço Oliveira e Victória Bento, respetivamente com 1.19 horas e 1.37 horas.