Apesar do título europeu no lançamento do peso em pista coberta, Auriol Dongmo vive sob o anonimato, influenciado pela proteção dos novos tempos - a máscara -, mas também por um perfil muito reservado.
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Há quatro anos em Portugal e cerca de um ano e meio com a nacionalidade lusa, assume a nova identidade com paixão e lembra a devoção por Fátima. Em termos desportivos, aponta à medalha olímpica e, aos 30 anos, estima mais sete ou oito anos de competição.
Que significado teve o título de campeã da Europa?
Foi extremamente importante e uma satisfação por dar uma alegria a tanta gente que acredita em mim. Sobretudo, nesta altura, em que muitos estão tristes em casa por causa da pandemia.
O que mudou depois do título? É mais conhecida na rua?
Não notei nenhuma mudança. Fico muito em casa e ainda nem sequer fui ao supermercado. No autocarro também não me conheceram, pois não é fácil reconhecer alguém com máscara.
Como explica nunca ter cantado o hino dos Camarões, o país onde nasceu, quando foi campeã africana, e agora ter cantado com tanta emoção o hino português?
Ainda não consigo explicar. Senti que estava a representar um país de que gosto verdadeiramente e digo isso com o coração. Se não fosse assim, nunca cantaria o hino, mas isso não quer dizer que não goste dos Camarões. Sou tímida, não canto. Só que, desta vez, senti uma coisa diferente ao levantar a bandeira, algo muito emocionante. E pensei nas pessoas que me deram muita força para estar aqui.
Fê-lo com o punho no ar por algum significado especial?
Não. Quando cheguei a Leiria, Paulo Reis, o meu treinador, disse-me que tinha de aprender a cantar o hino. E quando me ensinou, na parte em que se diz "às armas", ergueu o punho e isso ficou na minha cabeça.
Já foi a Fátima depois da vitória?
Não.
Mas tenciona lá ir agradecer, até porque é uma grande devota de Nossa Senhora?
Sim. Sou crente e agradeço todos os dias pela sorte que tenho na vida. Vou a Fátima quando posso e não todos os dias, mas agradeço a Deus na minha casa. Foi a primeira coisa que fiz no final da prova.
O que representa Fátima para si?
Representa a mãe de Deus e acredito que ajuda as crianças. Já vi muito do que fez na minha vida e está sempre lá para me apoiar. No plano profissional vim sempre a subir e acho que há influência de Deus nisso. Comecei em 2007 e desde 2011 até 2017 fui campeã de África e agora da Europa. E não é porque sou muito forte, mas acho que sim, pela graça de Deus, pois as outras atletas também são fortes e treinam todos os dias. Se não fosse Deus, não estaria onde estou.
Nos Camarões, teve de superar muitas dificuldades na vida?
Foi difícil, pois não há condições para preparar um atleta de alta competição. Fui treinar para Marrocos, por melhores resultados.
Referia-me à infância e na vertente social...
Não. Em relação à família, tenho uma irmã e dois irmãos, não éramos ricos, mas nunca faltou nada.
Começou no andebol e no basquetebol?
Sim, na escola.
E como surgiu o lançamento do peso?
Um professor de educação física perguntou-me se queria lançar. Havia um torneio, não existia ninguém para o fazer e disse que me tinha visto, sabia da minha força e questionou-me se podia ajudar a escola. Disse-lhe que sim, apesar de não gostar, sem compromisso. Fui e ganhei a medalha de bronze.
E depois?
Um treinador nacional viu a prova e disse-me que tinha potencial para ir longe. Nessa altura, não liguei, como disse nem gostava de lançar o peso. Mas, após dois anos de pressão, aceitei começar a trabalhar.
Saiu dos Camarões para melhorar as condições de treino. Porque escolheu Portugal em 2017?
Sempre gostei muito do país. E porquê? Porque muita gente não sabe que foi Portugal que descobriu e deu o nome aos Camarões [exploradores portugueses chegaram ao litoral no século XV e nomearam a área de rio dos Camarões]. Tenho uma filiação desde sempre com o país que, além disso, tem uma forte cultura religiosa por causa de Fátima e... tinha a ideia de um dia vir viver para aqui.
Não esteve para ir para França?
Quando estava em Marrocos, fui contactada por um clube francês para depois competir pela seleção. Falei com uma amiga, a Rose, lançadora do disco, que me sugeriu antes Portugal. Disse-me que seria melhor e que tentasse contactar o Sporting.
E como chegou ao clube?
Até agora não sei com quem falei, mas fi-lo através de mensagem no Facebook. Referiram que precisavam de um lançadora e sabiam quem eu era. Depois, pagaram-me o bilhete de avião.
A adaptação foi boa ou chegou a a pensar voltar para África?
Foi boa, mas vou ser sincera. Quando cheguei, não foi com a ideia de representar Portugal. Mas depois o meu treinador fez muita pressão, ouvi vários conselhos, estava num país que gosto e decidi lançar por Portugal. Mas é sempre difícil mudar, pois já tinha competido pelos Camarões e o assunto levanta sempre problemas.
Quais?
Mesmo nos Camarões houve pessoas a perguntar porque iria mudar e aqui também houve gente que falava e não gostava de pretos. Não foi fácil. Quando comecei a competir ouvi muitas coisas do género "ah, é imigrante", "não é o país dela" e isso deixou-me triste. Quando represento um país faço-o com o coração. E não é nenhuma brincadeira. Quando levanto a bandeira de Portugal, é com todo o coração e não o faço só por fazer.
E alguma vez respondeu?
Nunca. O mais importante são os que gostam de mim. E esses são muitos mais do que aqueles que não gostam.
Está em Portugal há quatro anos. Já viveu algum episódio racista?
Já vivi um. Queria ir morar para uma casa, mas disseram-me que não podia porque era preta. Essas coisas não acontecem só aqui. Há racismo em todos os países. Mas não ligo muito, pois todos vamos morrer e ninguém vai levar um bocado de Portugal para debaixo da terra. Mas é triste... Trabalho todos os dias para defender esta bandeira. Podia representar a França ou outro país, mas escolhi Portugal porque tenho esta ligação desde os Camarões. Mas, enfim, não sou eu que vou mudar as coisas. ...O racismo não é de hoje. As pessoas não sabem de onde vêm, nem se as suas gerações eram portuguesas...
É possível ganhar uma medalha Olímpica em Tóquio?
Sim, claro. Treino para as grandes competições. O título olímpico é o mais importante. Mas os Jogos são diferentes, é onde estão os melhores atletas.
Ganhou 16 das 17 provas em 2020 e em janeiro fez a melhor marca do ano, com 19,65 metros. Até onde pode chegar?
O meu limite é o céu [risos]. Não sei até onde vou chegar, mas quero lançar muito mais longe.
Parou quase um ano para ser mãe. Se não fosse isso, podia ainda ter tido melhores marcas?
Nunca se sabe, é muito para um atleta. Se não tivesse parado para ser mãe creio que agora teria já lançado 20 ou 21 metros. Não faz mal, o meu filho está acima de tudo.
Quantas horas treina por dia e que tipo de alimentação faz?
Três a quatro horas. Temos uma nutricionista excelente, a Cláudia Minderico, do Comité Olímpico, que anda sempre atrás de mim por causa da alimentação.</p>
Porque vive em Leiria?
Por causa do Paulo Reis, o meu treinador. O Sporting queria que ficasse em Lisboa. Mas alguém da Associação de Atletismo de Leiria falou comigo e disse-me que ele era excelente.
Como foi treinar confinada?
É difícil. Em casa não tenho garagem, nem espaço para treinar. Só deu mesmo para alguns exercícios de mobilidade. Depois, o Governo permitiu que os atletas de alto rendimento treinassem e tudo ficou mais fácil.
Quanto tempo mais acha que vai competir?
A minha sorte é que comecei a competir já tarde e posso durar mais. Se Deus quiser ainda tenho mais sete ou oito anos pela frente.
Quando terminar a carreira vai ficar a viver em Portugal ?
Para já, estou em Portugal, mas ainda não pensei no que vou fazer a seguir.