Parou. Um dia, assim, de repente, fartou-se de correr. Ou doía demasiado. Mas quer regressar, passados meses. Um fisioterapeuta e um treinador ajudam a perceber como.
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Acontece. É uma chatice, mas acontece. Quando nos julgamos os maiores e conseguimos ir cada vez mais longe, puff, dá-se "un je ne sais quoi" que nos atira para o sofá. Na melhor das hipóteses, é uma lesão. Ou uma sucessão delas. E dizemos melhor porque, se não for uma lesão, é uma coisa bem mais difícil de tratar: a desmotivação. E essa alimenta-se da dificuldade física que é regressar às sapatilhas.
Atentemos então nos porquês do abandono da corrida.
Antes de mais, os erros. E sabemos melhor do que ninguém que os cometemos. "A programação de treinos é muitas vezes um problema. Não há um bom trabalho de reforço, não obrigatoriamente muscular, mas das zonas cinzentas do nosso comportamento motor. Falta muitas vezes trabalho para a mobilidade, por exemplo. Uma avaliação dos padrões de movimento de base permitiria perceber limitações mais marcadas no ombro, na anca, no pé, por exemplo", explica-nos Nuno Silva, Fisioterapeuta das Clínicas Nuno Mendes.
Daí decorrem as lesões. Depois, aponta a falta de avaliação da força, da resistência e da agilidade que permitiriam a um corredor adaptar os treinos para melhorar a performance - a desmotivação decorre muitas vezes da estagnação. Por fim, e aí está o pior, Nuno Silva fala da terrível "falta de estímulo". "Muitas vezes, a única preparação física é meter quilómetros nas pernas - acaba por gerar monotonia. É como comer massa e arroz todos os dias..."
Chegados à parte em que se parou, vejamos o que acontece ao nosso corpo. "Os músculos (sejam esqueléticos ou cardíacos) e estruturas (ossos e articulações) necessitam de estímulos contínuos e variados para poder resistir a esforços cada vez mais exigentes", explica Ricardo Bomtempo, treinador pessoal.
Ora, após um repouso prolongado por vários meses, "os músculos perderam capacidades para resistir aos esforços que enfrentávamos quando treinávamos de forma ativa e regular". E deixaram de proteger tão eficazmente as estruturas osteo-articulares de impactos contínuos, que "ficam assim mais expostas a lesões". Por fim, "a falta de estímulos fortes e consistentes" reduz "zona de esforço em que conseguimos correr confortavelmente durante um longo período" (amplitude aeróbia).
O "limiar anaeróbio", que separa o esforço suportável do esforço apenas possível por minutos ou segundos, desce. E uns pobres minutos de corrida lenta atiram-nos para a hiperventilação, as dores nos músculos e a incapacidade de sequer verbalizar que nos doi tudo, até à alma. Como se estivéssemos a cortar a meta de uma maratona.
Se o travão tiver sido uma lesão, aconselha Nuno Silva, importa tirar das avaliações as possíveis causas do problema e procurar resolvê-las antes de voltar a calçar as sapatilhas a sério (ainda que nunca se deva parar a atividade física, avisa). E, no caso do aborrecimento com a corrida sempre igual, "sair do comodismo" e diversificar a atividade, introduzindo natação, ginásio, reforço muscular, bicicleta, o que for caso. Por fim, reter uma simples lição: não sujeitar o corpo à exigência a que estávamos habituados. Ou seja, diminuir o volume e a intensidade dos treinos, privilegiar os planos em vez das subidas e dos sprints e diminuir distâncias.
"Fará sentido tentar um esforço alto e apenas diminuir o tempo de treino? NÃO", completa Ricardo Bomtempo. "Os músculos não estão preparados e o risco de lesão aumenta", além de que a capacidade cardiovascular não vai permitir que se exagere. Então correr o mesmo tempo que antigamente, mas lentamente? Talvez. Se o corpo deixar.
"Dores nos joelhos ou nos pés poderão juntar-se a um desconforto respiratório contínuo", avisa o treinador. Deixa dicas: preferir qualidade à quantidade, respeitar os sinais do corpo, parar se houver dores agudas e desconforto permanente, evitar tentar acompanhar alguém que esteja em forma, fazer uma competição, respeitar o tempo que as coisas levam.
"Recomeçar não é o mesmo que começar do início, embora a capacidade física possa estar num nível muito idêntico a quando se começou. Há uma memória do que é exigido para a função, como se deve correr, o que correu bem, o que correu mal nas experiências passadas. No entanto, fisicamente terá sempre que se passar por um período de adaptação", diz Nuno Silva.
"Os músculos têm memória e vai acontecer algo incrível: os primeiros treinos serão bastante difíceis, mas quase por magia muito rapidamente vai sentir-se novamente confortável em esforços cada vez mais altos e longos", diz Ricardo Bomtempo.
Para facilitar, comece-se com "treinos curtos de 30 a 45 minutos nas primeiras duas semanas e, após um aquecimento de 10 a 15 minutos lentos, encontre-se dois patamares, um de esforço (corrida) e um de recuperação (corrida mais lenta ou caminhada), iniciando com um período de esforço com metade do tempo do da recuperação, evoluindo até ao inverso. E, uma vez, tente-se um treino contínuo de 30 minutos, por exemplo, a aumentar cinco minutos a cada nova tentativa". Tudo isto acompanhado de exercícios de força e funcionais.