Grande Prémio de Atletismo do Encontro regressa todos os agostos às terras de Barroso para lembrar que não há fronteiras nem nações. Foi no dia 13. Uma festa.
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"Corrida?" Credo, diria a aldeã galega se, por acaso, invetivasse em português. Podia, que Portugal é ali, a umas centenas de metros. Um milhar, bá. Corrida, nunca, porque dar uma corrida, na Galiza, é mais entre os lençóis.
Foi só por isso que o Grande Prémio de Atletismo do Encontro se chama Grande Prémio de Atletismo do Encontro. Corrida faria sorrir metade do Grande Prémio, que se estende, coisa quase única, fronteira arriba. Ligou há dias a espanhola Randín à portuguesíssima Tourém, porque este ano era assim, em anos idos foi ao avesso, o que interessa é o âmago da questão: estas aldeias cresceram de mãos dadas, desde tempos imemoriais.
Quer dizer, desde 1864, ano em que o mapa ganhou o desenho que tem hoje... Até lá, Tourém e Randín eram os recetáculos livres de alfândega do comércio do Couto Misto, essa nação sem líderes nem dependência de nenhuma das coroas encravada entre países, ali ao lado.
Hoje, são duas irmãs gémeas cujos jovens se enamoraram e atravessaram fronteiras para corridas, das tais, que deram casamento, fosse em qual das igrejas fosse, ou capelas, que marcam a fronteira, também eles. Duas gémeas cujas gentes davam as mãos como elas, mas à sombra do breu das noites de contrabando forçado pelo tratado de 1864 que deu o Couto Misto a Espanha, tabaco de um lado, conservas de fruta do outro.
Tourém, para quem não estiver a localizar, é aquele dedo de Montalegre teimosamente espetado na Galiza, como um insolente indicador no nariz, ou como um objeto de corrida, vamos lá ser como quem lá vive e se ri de tudo, porque a vida se faz de nada. E Randín é ali, também, à distância de uma ida ao pão.
Nuno Alves lembra-se tão bem de ser canalha e ir a Randín "buscar pão"... Cresceu, a gerir o gado pelas encostas até à Mourela, até à Galiza, até onde o dia deixava ir. Um dia na porta dos 18 anos trocou-lhes as voltas. "Uma brincadeira com uma arma" tirou-lhe o dom de olhar o paraíso que o rodeava. A reabilitação levou-o até à capital, a vida lá era "monótona" e o atletismo era o desporto que melhor acolhia a deficiência visual. E 22 anos depois, o raiano tem nas pernas dez Campeonatos do Mundo, nove da Europa, cinco Jogos Paralímpicos, 23 medalhas e vários Grandes Prémios de Atletismo do Encontro.
Na partida, é o único que olha de frente para a objetivo. É o único que não a vê. E será, também, o único que dará pela roseira brava que marca uma curva, ali a meio dos quase sete quilómetros de um delicioso percurso de sobe e desce e pedra e terra e bosta e líquenes. Porque Nuno é o único que lhe sabe o cheiro, há 40 anos. "Tenho a noção perfeita do sítio, dos obstáculos, da envolvência. Consigo saber o que está à direita e o que está à esquerda. Porque sei exatamente todas as montanhas."
Mas e a corrida, perdão, o Grande Prémio?
É isso, um festival de cor e cheiro e uma borga pegada, com a costumeira dinâmica espanhola - ânimo! ânimo! venga! - e a juventude dos comissários, os seniores demasiado seniores para alinhar na caminhada e que ficam nos pontos de controlo a marcar o percurso, que é como quem diz a impedir os finórios de cortar caminho.
A ideia foi de Vítor Prego de Castro, um limiano (?) residente em Lisboa (??) apaixonado pela mulher e pela terra dela (ah!) há 33 anos. Falou com a malta de Randín e com a autarquia e foi abraçado pelas aldeias. O Secretariado da prova em Tourém é Inês, filha de Vítor, lisboeta de gema, sentada à sombra do Largo do Outeiro.
Os dorsais são os mesmos de sempre, porque "a pegada ecológica é zero", um T para os de Tourém, um R para os de Randín, as t-shirts são técnicas e a inscrição junta dinheiro para haver pelo menos três classificados masculinos e femininos na prova juvenil e na dos grandes. Ah, e vale 3,90 euro. Exato. Porquê, Vítor? "É a barreira psicológica, 4 já seriam quatro, 3,90 são três", ora bem, e "os americanos têm muito isto".
Que o diga Alberto Ramos. O nome não denuncia o economista de Nova Iorque que não perde um verão em Tourém, filho e neto de raianas, absolutamente dependente das férias por cá. "É o sentimento de liberdade e segurança", dele e dos filhos, cinco e dez anos, largados na paz da aldeia, ao deus dará da familiaridade. Corre, porque correr este Grande Prémio é celebrar a união dos povos, é suar o reencontro das amizades de infância.
Trata-se, diria Vítor, de cada um fazer o que pode para que se fale de Tourém e Randín, irmãs, como todas no Barroso, no isolamento e na desertificação. "Estas aldeias precisam disto como de pão para a boca".