Atletas preparam-se cada vez mais e recorrem a empresas especializadas. Muitos começam a fazê-lo logo aos 18 anos.
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Falar-se de final de carreira nunca é fácil. Para os jogadores, pela obrigação de se despedirem do que mais gostam de fazer; e para os adeptos, pelo facto de deixarem de ver as estrelas brilharem no relvado. O tema ganha dimensão, tendo em conta a idade já avançada de alguns dos melhores craques dos últimos tempos, como Ronaldo e Messi, por exemplo. E depois de pendurarem as chuteiras? O que fazer? Não faltam casos de jogadores que perderam o rumo e ficaram sem chão quando se reformaram.
No caso do português, que aos 37 anos ainda não pretende terminar a carreira tão cedo, já há um pensamento para a vida pós-relvados - veja-se a ramificação dos negócios em hotéis, clínicas, linhas de roupa e até na compra de uma empresa de aviação. Se antes o final da carreira era um tema pouco aprofundado, agora é algo preparado. Além da pareceria do Sindicato dos Jogadores com o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros para promover formações a atletas no âmbito da literacia e gestão financeira, há também empresas que acompanham e ajudam os atletas a encontrarem um plano B, como a Sports Embassy.
Inês Caetano, criadora do projeto e que esteve sempre ligada ao desporto, decidiu dar este passo por perceber que muitos atletas não sabiam o que fazer depois de terminar a carreira. Ainda que em Portugal não haja dados concretos por falta de estudos específicos, na Premier League, por exemplo, dois em cada três jogadores apresentam sérias dificuldades financeiras num máximo de cinco anos depois de se retirarem.
"Do dia para o outro, há um salário que deixa de entrar. Muitos deles não poupam nem sabem poupar e nós tentamos ajudar na literacia financeira. A questão emocional e o estar preparado para o momento do fim também são muito importantes. Normalmente, não envolve só o atleta, mas sim quem está à volta. Temos um programa com sete fases e adaptámo-lo às necessidades do jogador", acrescenta.
Feita a literacia financeira, há outro passo a ter em conta: dar confiança ao atleta e mostrar que pode ser bom noutras áreas. "O jogador é extremamente competente na modalidade que executa, mas depois sente-se inseguro. Muitas vezes, não se consegue ser bom em mais nada. Parte do trabalho é ver as áreas em que ele é bom e no que pode apostar", conta, garantindo que deixar o pedido de ajuda para a última da hora já não é tão comum: "Já temos até atletas de 18 anos que querem preparar as coisas com tempo".
Pedro Cary é gestor imobiliário
Pedro Cary, de 38 anos, somou 159 internacionalizações, passou nove temporadas no Sporting, conquistou, entre outros títulos, seis campeonatos, seis Taças de Portugal e um Europeu ao serviço da seleção portuguesa, em 2018. Mas, mesmo com um palmarés bem recheado, o agora jogador do Leões de Porto Salvo nunca se esqueceu que a carreira tinha os dias contados e decidiu pensar, com antecedência, num plano B.
"O atleta não pensa no fim, porque não tem a noção e a consciência que ele vai chegar. É importante que os atletas de alta competição percebam que para um entrar no balneário, outro tem de sair. E o que sai, muitas vezes, é porque acaba a carreira. E um dia, essa pessoa vai ser um de nós", explicou, ao JN. Pedro Cary começou a ganhar consciência que devia preparar o futuro quando saiu do Sporting, em 2019: "Comecei a pensar mais em organizar a minha vida quando assinei pelo Sporting, pelos jogadores que lá estavam. Não só a nível desportivo, mas também no extra-campo, que já trabalhavam o final da carreira.
Depois, quando saí para Espanha [em 2019], comecei a ser acompanhado, porque como tive o meu pico de forma no Sporting, fiquei com a noção que a minha carreira ia começar a cair".
O futsalista aproveitou para apostar numa área que gosta muito, o ramo imobiliário, e tirou várias formações até ingressar numa agência. Pedro Cary também fez questão de fazer uma gestão financeira e garante que, apesar dos receios pela mudança, tudo vale a pena. E não há que ter medo, como o próprio faz questão de aconselhar a outros colegas.
"Preparei-me do ponto de vista financeiro para poder acabar a carreira quando quiser e não depender de ninguém. Receios todos temos, vamos trabalhar com pessoas novas e é normal falharmos. Mas não é um problema, um atleta está habituado a falhar e a dar a volta. Se terminasse a minha carreira hoje, acabaria com o objetivo cumprido . O pós-carreira deve ser trabalhado o quanto antes. Informado, o atleta decide melhor", concluiu.
Tarantini tem doutoramento
Foi no dia de aniversário, a 7 de outubro de 2021, que Ricardo Monteiro, mais conhecido como Tarantini, decidiu anunciar o final da carreira. Mas o fim coincidiu com o início de um novo capítulo: o antigo médio do Rio Ave foi o primeiro jogador profissional em Portugal a conseguir tirar o doutoramento, depois de ver a tese apresentada na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, ser aprovada por unanimidade.
Intitulado de "O perfil atlético dos jogadores de futebol portugueses nos últimos 50 anos", o trabalho de investigação, com três artigos já publicados em revistas internacionais da especialidade, abordava o desenvolvimento das carreiras dos jogadores de futebol e o planeamento do final das mesmas, na sequência do projeto que criou sobre a temática, apelidado "A Minha Causa".
Apesar de ter sido sempre um jogador consciente sobre o final da carreira, Tarantini não esconde que o processo de adaptação é difícil. "Sempre me preocupei com o quanto ia durar o meu percurso e no que ia ser depois dele. Mesmo assim, a transição para o final é muito dura. Fica um vazio enorme. Não é só físico nem mental, são as rotinas que mudam muito", partilhou, ao JN.
A melhor forma para lidar com o vazio, segundo Tarantini, passa por "arranjar outra atividade" mas nem todos pensam nisso. Por isso, e por se ter cruzado com atletas que foram obrigados a terminar a carreira de forma precoce ou até ficaram na bancarrota, o antigo jogador decidiu criar o projeto "A Minha Causa", em 2016, pelo qual já deu várias palestras, para ajudar muitos desportistas a prepararem o final da carreira e a não olharem para a despedida como o fim do mundo.
Dados estatísticos
Futebol americano
Cerca de 80% dos jogadores que se retiram ficam falidos nos primeiros três anos.
NBA
60% dos jogadores, após terminarem a carreira, ficam falidos em cinco anos.
Premier League
Dois em cada três jogadores apresentam sérias dificuldades financeiras num máximo de cinco anos depois de se retirarem e um em cada três ex-jogadores divorciam-se nos primeiros 12 meses após o abandono do futebol.