Sindicato de Jogadores quer aumentar os salários, mas os clubes ainda têm fontes de receitas muito pequenas. Só há 190 jogadoras profissionais no futebol português.
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O apuramento da seleção feminina para a fase final do próximo mundial atraiu todas as atenções, mas atrás desse feito histórico esconde-se um quadro laboral que está a merecer uma dura batalha.
Recentemente, o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF) apresentou uma proposta para um acordo coletivo de trabalho (ACT) com o objetivo de regulamentar e equiparar o futebol feminino ao masculino, mas esta proposta está longe de agradar aos clubes, até porque as condições contratuais exigidas emperram logo no ordenado mínimo proposto de 2280 euros.
"Profissionalizar conforme foi abordado é completamente descabido. Se isso avançar, vão ter cinco ou seis clubes na Liga BPI, porque o resto não tem hipóteses de andar lá. Para a maior parte dos clubes é impossível pagar à Segurança Social os custos de uma jogadora profissional, ainda por cima com o ordenado mínimo que o Sindicato quer estipular. Está fora de questão", explica, ao JN, José Luís Ferreira, presidente do Atlético de Ouriense, da Liga BPI. "Os clubes terão de ser ouvidos, a própria Federação e o Sindicato têm de nos dar respostas, conhecemos as dificuldades, e o Estado também", acrescenta.
Joaquim Evangelista, presidente do SJPF, já tinha ouvido algumas queixas dos clubes num recente workshop organizado pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF), e esclareceu a questão. "Sabemos que é preciso dialogar com os clubes e definir um regime transitório para atingir esse objetivo, mas queremos que seja a meta a alcançar. Aliás, em linha com as recomendações governativas nesta matéria, não faz sentido promovermos uma política desportiva assente na igualdade de género e recusarmos estabelecer como objetivo uma das suas premissas fundamentais, que é a do salário igual para trabalho igual", adianta, ao JN.
As negociações prometem dificuldades para conjugar os interesses de todos. "Na nossa perspetiva, esta proposta deverá levar à criação de um grupo de trabalho para finalizar o documento em termos técnicos e conseguir a sua aprovação. Gostaríamos de ver o ACT em vigor na próxima época desportiva, mas sabemos que há um diálogo e concertação a fazer", reconhece o presidente do SJPF. Mas há outras questões em causa, para além do ordenado.
"A principal preocupação é o bem-estar, ou seja, termos condições técnicas e isso ainda não acontece em equipas suficientes para tornar a nossa liga competitiva. Falta investimento nos clubes e não é fácil. Sabemos que o retorno do futebol feminino também não é o mesmo que no futebol masculino. Mas temos de começar por algum lado", sustenta Priscila Campota, defesa do Marítimo.
Investimento da FPF
Maria Magalhães, advogada especializada em direito desportivo, apresentou um projeto de investigação sobre o futebol feminino português, em janeiro de 2020, na Universidade de Lérida, no âmbito de uma pós-graduação, e identificou várias situações a regulamentar. "Na Liga BPI temos atletas com contrato de trabalho, outras em regime de prestação de serviço, mas a grande maioria recebe apenas ajudas de custo, o que torna esta liga desequilibrada entre equipas e dentro das próprias equipas. As relações laborais são precárias. Não há remunerações mínimas fixadas, não há direitos de formação, não estão clausulados direitos de imagem. Estas jogadoras querem fazer do futebol profissão, mas esta precariedade não vai permitir que se dediquem em exclusivo como profissionais", sublinha.
Muitas atletas trabalham, ou estudam, e ainda têm de conciliar o futebol com a vida de casa, o que trava o potencial competitivo da liga e está longe de promover a evolução do futebol feminino, em que só Benfica, Sporting e Braga conseguem ter plantéis cem por cento profissionais.
Segundo dados a que o JN teve acesso, existem 2103 jogadoras seniores em Portugal, mas só 190 são profissionais, distribuídas por todos os clubes da Liga BPI e por 12 das 18 equipas da 2.ª Divisão. Mesmo assim, a profissionalização tem vindo a crescer de forma significativa nos últimos seis anos - em 2017/18 só existiam 24 jogadoras profissionais -, uma batalha longa e feita de investimento. Esta época, por exemplo, o Programa de Apoios da FPF disponibilizou dois milhões de euros nas ajudas "à formação da jogadora portuguesa" ou "à promoção ao profissionalismo", sendo que o peso dos vários incentivos da FPF já representam, em média, 30% dos orçamentos dos clubes.
No entanto, para haver uma maior equidade salarial de género, os clubes terão de aumentar as receitas para suportarem um investimento salarial a rondar um milhão de euros por época para cumprir as intenções do SJPF. E essa é a chave da questão. "Se insistirem vai acontecer aquilo que aconteceu no Condeixa, que há uns anos era muito forte no futebol feminino, e fechou portas com dívidas a jogadores, treinadores e staff. Seguem esse caminho e fechamos daqui por dois ou três anos, ou fazem as coisas com os pés bem assentes na terra", argumenta José Luís Ferreira, presidente do Atlético de Ouriense.
Sindicato desdramatiza
Joaquim Evangelista desdramatizou a questão, garantindo haver margem para se avançar com o ACT. "Sabemos que muitos clubes têm um trabalho meritório e um legado no futebol feminino, mas tal como em muitos outros países que passaram por este processo de crescimento da modalidade, existe margem para crescimento e adaptação. Temos de apontar à fixação de regras claras, aplicáveis a todos os contratos de trabalho, procurando reforço para que as nossas jogadoras tenham condições de trabalho dignas. Não podemos permanecer com esta visão tacanha de que o mundo vai acabar e deixará de haver futebol feminino. O Sindicato não parte para esta negociação com uma postura do tudo ou nada", vincou.
Cada clube e, quase, cada jogadora é um caso específico, a julgar pelas atletas entrevistadas. "Neste momento sou jogadora a tempo inteiro, porque vivo em casa dos meus pais, não é porque tenha condições contratuais que me permitam isso, é opção minha. Já joguei e trabalhei, mas o rendimento é diferente", garante Jéssica Pastilha, 27 anos, jogadora do Atlético Ouriense. "Mas a maior dificuldade com que me tenho debatido mesmo tem sido a questão do contrato de trabalho e do salário. Claro que isso tem a ver com o clube, porque não têm capacidade para assumir um compromisso. Mas não tenho as condições de trabalho que precisava de ter", acrescenta.
Além disso há questões relacionadas com a própria natureza feminina que também é preciso ter em conta. "Deixei de jogar em 2016, porque decidi que queria ser mãe, engravidei. Decidi que teria de ser o ponto final no futebol, porque seria muito difícil conciliar vida familiar, trabalho e futebol", adianta Ana Valinho, antiga jogadora amadora. "Não conheço nenhuma profissional que tenha sido mãe e tivesse continuado a jogar, tirando o caso da Patrícia, do Sporting, que não deixou de ver alterado o contrato, segundo revelou numa entrevista recente", destaca.
No início do ano, a história da gravidez de Sara Gunnarsdóttir, jogadora islandesa do Lyon, provocou indignação nos meios futebolísticos. A atleta sofreu represálias durante o processo, que culminou com o emblema francês a deixar de lhe pagar o ordenado nos últimos meses de gestação. A jogadora viu-se obrigada a recorrer à FIFA para reaver os salários em dívida. Para além da proteção à gravidez, a proposta do SJPF contempla ainda a questão dos ciclos de menstruação, do assédio sexual e moral na relação laboral. Não faltam questões para resolver. Agora, a batata quente está nas mãos das associações e dos clubes que terão de analisar esta proposta.