Antigo avançado recorda a relação com Co Adriaanse no F. C. Porto, a passagem pelo futebol alemão e não esconde uma mágoa em relação à seleção portuguesa.
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Em semana de dérbi entre F. C. Porto e Boavista, o JN convidou Hugo Almeida, que representou os dois rivais, a revisitar a vida passada no Porto. Mas acabou por ser o antigo avançado a levar-nos além-fronteiras, numa viagem por uma carreira gloriosa e que passou à tangente por um colosso europeu.
É no balneário do F. C. Porto ou no do Boavista que se sente mais a rivalidade do dérbi da Invicta?
A rivalidade é muito mais sentida pelos adeptos do que nos balneários dos dois clubes. Mas, hoje em dia, a pandemia da covid-19 fechou os estádios ao público e retirou ao dérbi a atmosfera de outrora. Além disso, infelizmente, o Boavista também não é o clube que era há uns anos.
Em 2003/04, chegou a cruzar-se com Sérgio Conceição no F. C. Porto?
Não. Quando ele chegou, em janeiro, eu fui emprestado à U. Leiria. Nem na seleção me cruzei com ele. Mas sei que é um grande ser humano e treinador. O F. C. Porto andava perdido e o Sérgio Conceição veio trazer a mística ao clube, trouxe o fogo que há nos portistas, aquilo que só quem lá jogou sabe o que é, a maneira como lá se vive o futebol. Está a fazer um grande trabalho e vai querer ganhar este dérbi para não deixar o Sporting fugir ainda mais.
Também não se cruzou com Jesualdo Ferreira no F. C. Porto.
Também não. Quando chegou, eu saí para o Werder Bremen. A verdade é que estive quase sempre para me cruzar com os atuais treinadores do F. C. Porto e do Boavista, mas nunca se concretizou. Foi um quase encontro com os dois (risos). Parece-me que Jesualdo está a colocar o Boavista no bom caminho, mas o clube, histórico, não está a atravessar a melhor fase. A equipa tem sempre um ou dois erros por jogo e isso deita tudo a perder. Está a precisar de pontos e eles não estão a surgir.
Natural de Buarcos, na Figueira da Foz, chegou à cidade com 14 anos para representar o F. C. Porto. Como foram esses primeiros tempos?
Fiquei no lar do F. C. Porto, na Rua de Costa Cabral. Tinha tudo ao meu redor, família, amigos, e de um momento para o outro estava num lar a viver com mais 50 pessoas. As noites eram complicadas, chorava bastante.
Porque escolheu o F. C. Porto?
Também tinha a opção de ir para o Sporting, mas senti-me mais acarinhado e desejado pelas pessoas do F. C. Porto.
Quanto foi ganhar?
Não vou revelar isso.
Que significado dá ao Porto?
É uma segunda casa. Foi lá que passei de adolescente para adulto, criei grandes laços com a cidade e as suas gentes. O Porto diz-me muito. As minhas filhas são de lá. Nunca tive muito tempo para visitar a cidade como desejaria. Saí de lá aos 21 anos. Quando morava no lar do F. C. Porto corria a rua de Costa Cabral toda até ao campo da Constituição. No início do mês ia sempre comer uma francesinha ao Barcarola, em frente ao lar.
Ter escolhido o F. C. Porto fechou-lhe as portas de Sporting e Benfica no resto da carreira?
Tive a oportunidade de ir para o Sporting, quando lá estava o Jorge Jesus, mas as coisas não ficaram bem encaminhadas e não houve mais contactos nem conversas.
Nos seniores do F. C. Porto foi com Co Adriaanse que mais jogou. Tem boas histórias com o treinador holandês?
Também foi ele quem me dispensou no final dessa época. A única história que tenho com ele foi o golo ao Inter Milão [um livre direto do meio da rua na Liga dos Campeões]. Durante a semana, ele dizia para não chutar de longe, porque só chutava por cima e mal. Depois, teve que gramar comigo. Nos dias seguintes e até hoje também [risos]. Adriaanse tinha a sua maneira de pensar, era complicado lidar com ele, mas devo-lhe algum respeito. Foi dos que apostou mais em mim. Até então, ficava meio ano no F. C. Porto e era emprestado no outro meio. Com ele, fiz um ano completo, fui campeão, venci a Taça e fiz golos importantes.
Num desses empréstimos que referiu vai para o Boavista e é treinado por Jaime Pacheco.
Verdade. Estava quase para ir jogar para fora do país, mas o míster Jaime Pacheco foi ter comigo, conversámos e convenceu-me a ir para o Boavista. Apesar de ser um treinador "old school" [da velha escola], que gostava muito de correr no Parque da Cidade, gostei de trabalhar com ele, fez sempre boas épocas no Boavista.
Agora, além de comentador desportivo na SportTV, também é treinador. Foi difícil pôr um ponto final na carreira de futebolista?
O corpo foi dando sinais e chegou a uma altura em que tinha de ser. Já falhava alguns treinos com dores nas costas e jogava pouco. Sentia-me a mais e foi melhor acabar com o sofrimento. Comecei, logo a seguir, como treinador adjunto dos sub-23 da Académica, nem houve tempo para fazer o luto. Não me arrependo.
E qual é a aposta para o futuro? O comentário ou o treino?
Comentar os jogos é mais um passatempo, o que quero é ser treinador. Comentar ajuda-me a conhecer melhor o campeonato, as equipas. Estive fora do país quase 12 anos. Como quero ser treinador, é bom ver jogos, ver como os treinadores pensam, como colocam em prática as ideias. Estou a adorar experiência de ser comentador, permite-me analisar tudo ao pormenor. Como os estádios estão sem adeptos percebo tudo ao pormenor e pode ser importante na minha caminhada como treinador.
Que modelo mais lhe agrada?
Gosto do modelo com três centrais e os laterais projetados, mas um treinador tem de ser polivalente. Tenho uma equipa técnica montada, estruturada, à espera de abraçar um bom projeto.
Que nível de treinador tem?
Apesar da carreira de futebolista que tive, representei a seleção e muitos clubes do país e de lá de fora, obrigaram-me a tirar o nível 1 - foram precisos três anos - e vou terminar o 2 este ano. No nosso país, não é fácil. Devido à tempestade que o Silas e o Ruben Amorim provocaram, as coisas estão melhores, porque encurtaram tempo de estágios e dos cursos. Caso contrário, para tirares o nível quatro eram precisos 10 ou 12 anos. Nem para seres médico precisas de tanto tempo. Tentei tirar o curso na Irlanda, mas eles comunicaram à Federação Portuguesa de Futebol, que não autorizou. Temos todos de andar à sua mercê.
A aventura de 12 anos seguidos como emigrante começou na Alemanha, na Bundesliga, no Werder Bremen.
Hoje, posso dizer que foram 10 ou 20 passos em frente na carreira, mas na altura com 21 anos não pensava sair de Portugal. Tinha sido campeão e ganho a Taça e queria ficar no F. C. Porto mais uns anos. Adriaanse dispensou-me e tive de fazer uma opção. A verdade é que adorei estar lá, fiz-me homem lá e trabalhei com uma pessoa fantástica, o treinador Thomas Schaaf.
Saiu quatro anos e meio mais tarde para o Besiktas, na Turquia. O que o levou a mudar?
Estava em fase final do contrato e surgiu a oportunidade de ir para o Real Madrid. O José Mourinho quis que fosse e eu trabalhei toda a carreira para chegar a um clube daquela dimensão, além de que tinha lá amigos. Infelizmente, as coisas não deram certo. O diretor desportivo [Jorge Valdano] não me quis e tive de seguir a minha vida. Apareceu o Besiktas e gostei da aventura que me propuseram. Não sei se hoje aceitaria, mas também fui lá feliz.
Sai passados quatro anos para Itália por meio ano. O que acrescentou o Cesena na sua carreira?
Acabei contrato com Besiktas e confiei num presidente de um clube. Prometeu-me que ia assinar pelo clube, mas tinha estrangeiros a mais e tinha de sair um primeiro. Disse-me para não assinar por ninguém e rejeitei propostas. No último dia de mercado esse presidente ligou-me a dizer que não ia assinar, o treinador não me queria. Fui para o Cesena para me manter ativo, porque sabia que no mês de janeiro seguinte ia sair.
E que clube era esse?
Isso não interessa.
Segue-se um ano na Rússia, meio no Kuban Krasnodar e outro meio no Anzhi. Que tal foi viver lá?
Supertranquilo. Pus o Kuban Krasnodar na final da Taça da Rússia pela primeira vez em 50 anos, com um golo ao CSKA nas "meias", mas perdemos a final para o Lokomotiv.
Depois volta por meio ano à Alemanha, pelo Hannover 96, e vai para a Grécia jogar no AEK. E essa experiência?
Foi uma fase completamente diferente da carreira. Aí, sim, tive muita qualidade de vida profissional e privada. Viver Atenas é fantástico.
E termina, depois, a vida de emigrante na Croácia, no Hajduk Split.
Não correu como desejava. A lesão nas costas foi piorando, estava psicologicamente cansado. No final da época decidi voltar a Portugal, para acabar a carreira na Académica. Precisava de estar perto dos meus.
Também foi internacional. Fica com mágoa por não ter ido ao Euro 2016?
A única mágoa que fica é ausência de um agradecimento por tudo o que dei à seleção. Representá-la é o maior orgulho que podes ter. v