Campeão olímpico e medalha de prata em Paris 2024 saboreia dias de realização e grande felicidade, mas deixa alerta para o futuro.
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“Vou ao cinema ver o ‘Balas & Bolinhos’”. É, assim, em modo ‘light’, que acaba a entrevista de Iúri Leitão, na Redação do JN. O último grande herói nacional, a par de Rui Oliveira, à custa da medalha de ouro, em Madison, no ciclismo de pista, à qual juntou a prata, em Omnium, abriu o livro e projetou o futuro, tendo em vista o próximo ciclo olímpico com destino a Los Angeles.
Continua a dizer que “só” ganhou duas medalhas?
[Sorriso] Não pretendo desvalorizar, mas, na verdade, são apenas dois símbolos, não é? A caminhada para chegar lá é que fica. O reconhecimento é que me deixa orgulhoso.
Mas não muda nada na carreira e na vida?
Não, não muda. Nós, atletas, trabalhamos para isto. No meu caso, no ciclismo de pista e na seleção, o objetivo era chegar aos Jogos Olímpicos. Queria mostrar o meu valor e está aqui [aponta para as medalhas].
Entrou num lote restrito, onde só estavam Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Nélson Évora e Pedro Pichardo. Se calhar, ainda não caiu a ficha...
Felizmente, entrei eu e o Rui [Oliveira]. Depois da prata, não houve tempo para festejar, pois o Rui merecia a minha dedicação e compromisso a 100%.
A receção no aeroporto e a homenagem em Viana do Castelo... incrível?
Sem dúvida, e só aí é que consegui celebrar um pouco, pois no domingo ainda estive a acompanhar a prova da Maria Martins e, ao fim do dia, fui o porta-estandarte e acabou tudo muito tarde.
Esgotado?
Cansado, feliz e orgulhoso. Foi uma conquista espetacular. A primeira medalha embalou-me para a segunda. Sabia que estava na minha melhor forma, mas podia não ser suficiente. Fui com a perspetiva de um top10, porque o melhor de nós pode não ser suficiente para bater outros.
Já reviu as provas?
Sim, e de certa forma corresponde à noção que tinha. Na corrida Omnium, percebi a superioridade que tinha em relação a alguns adversários e transmiti isso ao Rui. Como ele estava numa forma esplêndida, sabia que podia acontecer algo. Não apontava ao ouro, mas senti que podia haver um pódio.
Foi a prova mais dura da carreira?
Não, na verdade, não foi. Já tive dias bem piores em pista, por exemplo quando estava doente. Foi uma prova rápida, foi preciso sofrer, mas estávamos bem. Estes ambientes são muito competitivos e tensos, e foi importante sentir o apoio da família e ter a namorada na bancada.
E o festejo à Ronaldo?
Isso é tudo obra do Rui. Ele é superfã do Cristiano Ronaldo, adora futebol, e perguntou-me o que achava se fizéssemos aquilo. Eu disse que achava muito bem, porque o Ronaldo é um exemplo para toda a gente. Se não fizéssemos algo genuíno, algo nosso, não seríamos nós.
E valeu a felicitação do CR7.
O Rui fez uma festa enorme [gargalhada]. Recebi milhares de mensagens, mas ainda não consegui responder. O Pogacar, que é só o melhor ciclista do Mundo, também nos deu os parabéns.
Los Angeles 2028, próximo ciclo olímpico, é cedo para projetar?
A qualificação olímpica começa em 2027 e volta tudo à estaca zero. É preciso começar a somar pontos, estar bem nos Europeus e Taças do Mundo. Há quatro anos, não me qualifiquei, agora sou campeão olímpico. Não sei como vou estar daqui a quatro anos, mas estou ansioso e espero ter capacidade para representar Portugal em LA.
Com uma bolsa de 1750 euros? É suficiente para um atleta olímpico?
É o valor máximo, mas não é suficiente. É um valor simpático, mas claro que não é suficiente. O Rui veio a casa e viajou logo para a Dinamarca, porque é a equipa que lhe paga para ele competir. A principal fonte de rendimento vem das equipas. Precisamos de todo o tipo de apoio, porque estamos a competir com os melhores do Mundo.
Acredita que esta vitória pode dar um embalo a outros apoios, nomeadamente do Governo? Ou daqui a dois/três meses ninguém se volta a lembrar do ciclismo de pista?
Vamos ver, isto é novo. A modalidade está a crescer e nós não temos um terço das condições das grandes potências. Nada disto seria possível sem o trabalho redobrado do selecionador, mecânicos, massagistas, enfim, toda a gente que está à nossa volta e tem amor pelo ciclismo. Mas isto não dura para sempre, as pessoas ficam exaustas e afastam-se. Este é o momento para os apoios serem reforçados.
E para haver um “boost” da cultura desportiva?
Exatamente. Se queremos ter campeões, temos de investir. O programa de esperanças não existe. Não temos um responsável pelas camadas jovens, tem de ser o nosso selecionador, de vez em quando, a observá-los e chamá-los. Tem de haver investimento também nesse setor, porque daqui a uns anos, eu, o Rui, o Ivo, o João vamos deixar de ser os principais ciclistas. Há um prazo de validade para tudo. Temos conhecimento e uma seleção capaz de formar grandes talentos, mas, se não houver investimento, não haverá futuro.
O Velódromo de Sangalhos, na Anadia, oferece todas as condições?
Sem esse espaço, não haveria ciclismo de pista. É um local muito bem desenhado, mas também tem defeitos. Tem faltado um pouco de manutenção, mas a pista é muito boa. Dá-nos condições para fazer um bom trabalho.
Esta vitória do ciclismo nacional pode cativar mais jovens para a prática da modalidade?
Espero que sim. Quando eu era mais novo, não havia a tradição do ciclismo de pista. Gostava de ver os Jogos Olímpicos e comecei a acompanhar algumas referências. Naquela altura, já via o Rui em Europeus e Campeonatos do Mundo. Aquilo entusiasmava-me. Agora, sinto que há mais jovens a experimentar e a querer entender a modalidade. Se for um dos responsáveis para que haja um aumento maior, fico muito orgulhoso por isso.
Tem contrato até quando com a Caja Rural?
Tenho este e o próximo. A equipa está super-satisfeita, porque mesmo com o compromisso do ciclismo de pista, que tive de investir neste ano, tal não me impediu de competir em estrada. Entreguei à equipa três vitórias e fui campeão e vice-campeão olímpico. Estamos todos satisfeitos.
Em algum momento, pensou dedicar-se apenas ao ciclismo de pista?
Refleti sobre isso, mas houve sempre um bom entendimento com a minha equipa. A estrada também me dá um extra no que diz respeito à vertente competitiva, isto para além da parte monetária. A estrada ajuda-me na preparação para a pista.
Em Paris, sentiu muito o apoio dos emigrantes?
Sim, sim, muito mais do que imaginava. A pista estava repleta de franceses, mas havia sempre uma bandeira portuguesa, aqui e acolá. Havia sempre um grito de incentivo e uma daquelas palavras à moda do Norte.
Já sente a pressão do casamento, no próximo ano?
[Sorriso] Não, ainda temos tempo. O pedido foi feito antes dos Jogos Olímpicos, ainda em março, mas não quisemos tornar nada público, porque é uma coisa nossa, da nossa relação. Assumi essa responsabilidade e compromisso, e de certeza que vou saber lidar com o momento, tal como faço com a minha carreira.
Vai conseguir ter férias?
Nada. Estarei apenas uns dias por Portugal, pois, na próxima semana, já tenho de estar na Alemanha a competir. Tenho dormido pouco, mas é por um bom motivo. Estou grato por tudo.