Em seis anos, o plano de expansão do setor encetado pela FPF resultou na duplicação de senhoras a apitar
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Se no Mundial 2022 fez-se história, com a nomeação da francesa Stéphanie Frappart, que dirigiu na quinta-feira o Costa Rica-Alemanha, tornando-se a primeira mulher a apitar um encontro do Campeonato do Mundo masculino, em Portugal estão a dar-se passos relevantes, no sentido de uma crescente influência feminina, no setor da arbitragem.
Nesse particular, o trabalho desenvolvido pelo Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), presidido por Fontelas Gomes, tem dado frutos. Nas categorias nacionais, que são quatro, há neste momento cerca de 80 árbitras, distribuídas entre as três categorias de árbitras e uma categoria de assistentes. Se se alargar o leque até aos distritais, o número sobe para cerca de 400 mulheres a arbitrar. Neste momento, Portugal tem quatro internacionais (Sandra Bastos, Sílvia Domingos, Catarina Campos e Teresa Oliveira) e o mesmo número de assistentes (Andreia Sousa, Olga Almeida, Vanessa Gomes e Cátia Tavares).
Num sinal inequívoco da evolução neste segmento, em 2016 havia 33 árbitras nacionais e cerca de 200 em todo o país. A expansão da arbitragem lusa acabou por acompanhar o crescimento do próprio futebol feminino e daí, entretanto, terem surgido diversas categorias. O ritmo de crescimento foi "conscientemente fomentado" pelo CA nacional, refere fonte federativa, frisando que o processo contou com a "contribuição fundamental e conceptualmente alinhada dos CA distritais". O rumo de crescimento foi, no entanto, "interrompido" pela pandemia de covid-19, sendo que atualmente o CA depara-se com as mesmas dificuldades das congéneres europeias, quer no recrutamento, quer na retenção, de árbitros e árbitras. Em paralelo, foi igualmente criado um quadro de árbitras assistentes.
O CA tem trabalhado no sentido de concretizar a captação de mais mulheres para a arbitragem. O plano de desenvolvimento, que foi aplicado de 2017 a 2020, compreendia várias medidas específicas para o recrutamento e retenção de elementos femininos para a arbitragem, entre os quais a reestruturação de carreira e o trabalho alargado com outros profissionais, algo que se pode espreitar ao pormenor no quadro ao lado.
Se no Mundial2022, além de Stéphanie Frappart estão nomeadas para o torneio, como árbitras de campo Salima Mukansanga (Ruanda) e Yoshimi Yamashita (Japão), em Portugal a aparição nos grandes palcos tarda a acontecer. Sandra Bastos, árbitra internacional portuguesa, foi a primeira mulher a dirigir um jogo dos campeonatos nacionais (Real-Sporting B, na Liga 3, em agosto do ano passado). Nesse mesmo verão, a "juíza" de Aveiro já dirigira em julho o particular entre o Sporting de Braga e o Paços de Ferreira. Os sinais estão a ser dados..
FLASH
Sandra Bastos, Árbitra internacional portuguesa
"Não se trata do género, mas sim da competência"
A árbitra internacional portuguesa, de 44 anos e filiada na Associação de Futebol de Aveiro, fala, ao JN, da experiência na arbitragem, em que é a única "juíza" lusa da categoria de elite.
Já apitou um jogo amigável entre o Braga e o Paços de Ferreira e um jogo da Liga 3, entre o Real e o Sporting B. Foi difícil impor-se junto dos jogadores por ser mulher?
Para mim não foi difícil. No início claro que os jogadores testam sempre, mas como se apercebem que não quebro acabam por respeitar e até mesmo elogiar o trabalho. Em ambos os jogos fui bem aceite e elogiaram o trabalho da equipa. Não se trata de género mas sim de competência.
Preparou-se de forma diferente para esses dois jogos?
Preparo-me para todos jogos de igual forma, de acordo com a especificidade de cada um.
Pela experiência como árbitra, o público tem mais ou menos compreensão quando está uma mulher a apitar no relvado?
Falando apenas por mim, o público tem-me apoiado. Posso até dar um exemplo de um jogo da Liga 3 no Caldas. Fui elogiada pelo público e, inclusivamente, enviaram mensagens para as redes sociais a dar os parabéns, a mim e à minha equipa pelo trabalho tranquilo e assertivo durante o jogo, transparecendo sempre calma e paixão pelo que estava a fazer. "Dá gosto ver um jogo assim", diziam.
É a única árbitra portuguesa da categoria elite da FIFA. É uma motivação ou uma responsabilidade ser uma inspiração para muitas mulheres?
Deve e devia de ser uma motivação para as mulheres e não só para as mulheres. É uma responsabilidade também. Estou a representar a minha associação, o meu distrito, o meu país, a minha federação. Eu quero sempre mais e trabalho no dia a dia para ser sempre melhor do que fui ontem. Acordo todos os dias disposta a dar tudo de mim e o melhor de mim. Como costumo dizer, só vive o propósito quem suporta o processo.
INTERNACIONAIS
- Sandra Bastos, 44 anos, A. F. Aveiro (árbitra)
- Sílvia Domingos, 40 anos, A. F. Setúbal (árbitra)
- Catarina Campos, 37 anos, A. F. Lisboa (árbitra)
- Teresa Oliveira, 35 anos, A. F. Porto (árbitra)
- Andreia Sousa, 36 anos, A. F. Braga (árbitra assistente)
- Olga Almeida, 43 anos, A. F. Viseu (árbitra assistente)
- Vanessa Gomes, 35 anos, A. F. Lisboa (árbitra assistente)
- Cátia Tavares, 32 anos, A. F. Coimbra (árbitra assistente)
PLANO FEDERATIVO
Reestruturação
Revisão regulamentar alargada, incluindo a chance de evoluir na carreira exatamente da mesma forma e nas mesmas provas que os homens.
Maternidade
O plano de captação dá particular atenção à proteção da maternidade.
Insistir no masculino
Aumento da participação feminina de árbitras em competições masculinas.
Mais oportunidades
Criação de caminhos paralelos nas provas exclusivamente femininas, com processos mais rápidos e aumento das possibilidades competitivas.
Trabalho alargado
Aposta em equipas de apoio (formadoras, psicólogas, nutricionistas, médicas e administrativas) com maior representação feminina, para ir ao encontro das necessidades e expectativas das atletas/árbitras.
Diversificar papéis
Diversificação dos papéis das mulheres na arbitragem: diretoras, observadoras, técnicas de arbitragem (além de árbitras e árbitras assistentes).
Formação de topo
Apostar na criação do "formador dedicado" e na possibilidade de partilha das formações com outras categorias nacionais.
Público alvo
Aposta na divulgação especialmente direcionada para o público feminino (inclusão de árbitras nos flyers de divulgação dos cursos).
Convites para finais
Convite a jovens árbitras (a par dos colegas árbitros), para estar como convidadas em finais das principais provas nacionais masculinas e femininas.
FLASH
Ana Brochado Vogal do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol
"Existem ainda vários obstáculos para uma verdadeira igualdade"
Foi árbitra de futebol. Que dificuldades sentiu quando começou a carreira na arbitragem?
Iniciei o percurso num período onde nada o que dissesse respeito à arbitragem feminina estava definido e estruturado. A maior dificuldade era compreender o caminho a percorrer ou se havia sequer caminho a percorrer. No fundo é o normal de quem inicia um percurso que nunca tinha sido tentado. Ainda assim foi um período de experiências positivas e de evolução muito motivante.
Hoje as mentalidades estão mais abertas?
Existe uma diferença indiscritível entre a realidade da arbitragem feminina do final dos anos 90 (quando iniciei) e do que existe agora. Embora seja uma ilusão acharmos que a discriminação é coisa do passado, o caminho já percorrido na estruturação das competições e da arbitragem feminina é muito demonstrativo da forma séria como a FPF encara esta vertente em específico. Existem ainda vários obstáculos para uma verdadeira igualdade de oportunidades no desporto, mas estes obstáculos são característicos de uma cultura em evolução, que não conseguiu ainda acompanhar as intenções e ideias da estrutura de topo, que já se rendeu às evidências de todos os aspetos positivos da vertente feminina, que incluem também e ao contrário daquilo que era barreira para tantos, a questão económica, como se percebeu no último mundial feminino.
Até que ponto a presença de árbitras no Mundial pode abrir ainda mais as mentalidades e permitir que as mulheres se afirmem na arbitragem nos escalões principais?
A presença de árbitras no Mundial masculino, assim como no jogo da Supertaça Europeia, são exemplos claros do que descrevi e da aposta da tutela das mais valias da diversificação. É dar o exemplo por cima e sim, tem impacto positivo na aceitação e na forma de compreender a naturalidade da posição da mulher na arbitragem, a par dos colegas.
O número de mulheres a aderir à arbitragem em Portugal tem vindo a crescer?
Era crescente até à pandemia. Como aconteceu um pouco com todas as atividades desportivas competitivas, a arbitragem sofreu grande revés com esse momento de "estagnação da atividade". Temos um plano de recrutamento em marcha para retomar o ritmo de crescimento, fazendo face a uma grave falta de árbitros em geral e de árbitras.
É difícil captar mulheres para a arbitragem em Portugal?
A questão da participação desportiva feminina é um fenómeno relativamente bem estudado. Diria que a arbitragem feminina tem obedecido, de forma geral, aos mesmos padrões da restante participação desportiva feminina.
O futebol português está preparado para uma árbitra dirigir um jogo da Liga principal?
Sim, está preparado para isso enquanto mais uma novidade para título de notícia do dia seguinte (o que é já um primeiro passo), mas a grande ambição é que esteja preparado para que isso aconteça sem que seja assunto para notícia, por ser a normalidade. Esse é o desafio que pretendemos ver ultrapassado.