À beira dos 60 anos, o eterno capitão portista recorda tempos muito felizes.
Corpo do artigo
Parece que foi ontem que João Pinto andou às voltas no Prater, em Viena, sem dar a Taça dos Campeões a ninguém, mas a verdade é que o antigo capitão portista, que nasceu em Vilar de Andorinho e jogou no Oliveira do Douro antes de representar o F. C. Porto, já faz amanhã 60 anos. Em entrevista ao JN, o eterno número dois e atual coordenador técnico adjunto da formação portista recorda uma carreira cheia de sucessos e de memórias, com muitos elogios para José Maria Pedroto e Pinto da Costa, sem esquecer Sérgio Conceição
Tem o recorde de jogos pelo F. C. Porto (587), com 16 anos seguidos a jogar na equipa principal e 24 troféus conquistados. Como foi possível chegar a estes números?
Na altura, era mais fácil um jogador fazer toda a carreira num clube. A partir do momento em que houve a Lei Bosman, tornou-se muito mais difícil. Fico contente por ter conseguido. Foi sinal de que todos os sacrifícios que fiz na minha vida como profissional de futebol valeram a pena. Defender um clube como o F. C. Porto, que me deu tudo o que sou hoje, foi muito bom e só tenho de estar agradecido.
Nunca foi um peso exagerado ser o símbolo da chamada mística do F. C. Porto e carregá-lo às costas?
Símbolo só conheço aquele que as camisolas do F. C. Porto têm... Mais a sério, a verdade é que naquela altura nós jogávamos com muitos jogadores que tinham passado pelas camadas jovens. Em cada temporada, o F. C. Porto ia buscar dois ou três jogadores, no máximo. Para mim, era mais fácil ser o capitão e ter ao lado jogadores como o Jorge Costa, o Fernando Couto, o falecido Rui Filipe, o Domingos, o Vítor Baía, o Jorge Couto, entre muitos outros. Era fácil transmitir-lhes o que os mais velhos também me tinham transmitido quando eu comecei. A mística não era mais do que dar tudo pelo clube e ir buscar forças onde não existem. Foi sempre com essa mentalidade que vivi todos aqueles anos no F. C. Porto.
Quando terminou a carreira, em 1997, sentiu que tinha sucessores à altura?
Quando se fala da mística, não se pode falar só no João Pinto. Antes de mim, houve jogadores e treinadores que a transmitiam, além do próprio presidente. Talvez pela minha maneira de ser, eu conseguia levar isso para dentro do campo, não só nos jogos, mas também nos treinos, que é muitas vezes onde se mostra o que nos jogos não se consegue mostrar. Quando eu saí, o Jorge Costa passou a ser o capitão e também conseguiu transmitir os valores do clube aos outros jogadores que vinham.
Ainda se lembra do primeiro jogo que fez no F. C. Porto?
Não me lembro bem, mas sei que foi contra o Paços de Ferreira. O jogo de que mais me lembro no início da minha carreira foi uma Supertaça contra o Benfica, em que entrei ao intervalo na Luz. Perdemos essa primeira mão, mas na semana seguinte, nas Antas, ganhámos 4-1 e conquistámos o troféu.
Os jogos com o Benfica eram especiais para si e para a equipa?
Eram jogos com enorme carga de rivalidade e só por isso é que eram diferentes. Na década de 1980, o F. C. Porto começou a conseguir ganhar títulos porque encarava os jogos todos da mesma maneira. Sempre para vencer. Eu falo por mim. Se jogasse contra o meu filho de 12 anos, eu tinha de ganhar. Contra equipas mais fortes ou mais fracas, queria era ganhar e não me interessava o nome do adversário.
José Maria Pedroto foi o treinador que mais o marcou?
Todos os treinadores me marcaram pela positiva, mesmo os que estiveram pouco tempo no clube. Mas falar no sr. Pedroto é especial. Eu estreei-me com Stessl, mas já antes, quando o sr. Pedroto era o treinador, eu estava a trabalhar na Salvador Caetano, ele chamava-me para treinar com o plantel principal e eu vinha a correr.
Perder a final da Taça das Taças para a Juventus, em 1984, foi o momento mais difícil?
Foi duro, mas eu costumo dizer que esse jogo de Basileia foi a rampa de lançamento para o F. C. Porto ganhar competições europeias. Quando fomos a essa final, estar lá significava que já tínhamos ganho qualquer coisa, o que depois não aconteceu em 1987. Antes da final de Basileia, os jornalistas iam no mesmo autocarro dos jogadores, fomos para um hotel todos juntos e na véspera do jogo à noite houve lá um casamento. Isto diz tudo.
Em Viena, tudo foi diferente?
Sim. Aí já fomos para ganhar e preparámo-nos para isso. No final do jogo anterior para o campeonato, o Artur Jorge disse-nos que nas entrevistas que déssemos tínhamos de entregar o favoritismo todo ao Bayern. Não fomos para Viena em festa, mas única e simplesmente com o pensamento de vencer.
Muitos dos jogadores que participaram nessa final dizem que fizeram o jogo da vida deles. Também foi o seu caso?
Claro que ganhar aquela Taça dos Campeões foi uma coisa fora do comum. Três ou quatro anos, ninguém imaginava uma coisa daquelas. Foi o ponto mais alto da minha carreira como futebolista, mas, com a minha maneira de ser, qualquer jogo era para ganhar. Tanto valia ser contra o Bayern, como contra o Gervide ou o Oliveira do Douro. Não é humildade em excesso, eu era mesmo assim.
É um assunto já muito falado, mas se fosse hoje ainda tinha aquela reação no fim de não dar a taça a ninguém?
Se calhar, tinha. O que se passou foi igual à primeira vez que o meu pai me deu uma bicicleta. Os meus colegas queriam andar e eu não deixava, mas passado uma semana já não queria saber. Em tom de brincadeira, digo que ainda bem que fiz aquilo em Viena porque, passados mais de 30 anos, quando se vê uma fotografia da final sou eu que apareço com a taça na cabeça. Se a tivesse dado, hoje ninguém se lembrava do João Pinto. São coisas que acontecem. Em Tóquio, por exemplo, eu quase nem toquei na Taça Intercontinental.
Que memórias tem desse jogo em Tóquio?
Foi o maior sacrifício que fiz na vida. Depois do aquecimento, nem tínhamos força nos dedos para trocar o equipamento e para apertar as chuteiras. Ao intervalo, aconteceu a mesma coisa. Mas ainda bem que valeu a pena.
Qual foi o adversário mais difícil de marcar que defrontou?
Foi o Chalana. Era um jogador que ia sempre para cima do adversário e eu nunca sabia se ele ia fintar com o pé direito ou com o esquerdo porque para ele era igual. Depois, saía da finta e nem dava tempo para lhe dar uma porrada. Se ele ler ou vir esta entrevista, mando-lhe um grande abraço.
E entre os colegas de equipas, quem mais o impressionou?
Nos treinos, o Paulo Futre era o que mais me custava marcar. Mas era diferente do Chalana. À segunda finta, ele ia sempre para o meu lado esquerdo, porque se fosse para o direito já sabia o que lhe acontecia... Mas houve outros de grande valor. O Rui Barros tinha uma velocidade enorme. O Fernando Gomes foi um grande avançado e não é qualquer um que ganha duas Botas de Ouro. O Madjer foi o jogador mais completo que vi. De cabeça, pé esquerdo, pé direito, era de top. Só é pena que a nível mental não fosse tão forte.
A morte de Rui Filipe, em 1994, foi o acontecimento mais duro que teve de enfrentar?
Penso que sim. Eu dava-me muito bem com o Rui. Íamos várias vezes almoçar a casa dos pais dele, em Vale de Cambra. Era um rapaz espetacular, nunca dizia que não a nada do que lhe pedíamos. Estava a começar e foi pena que tivesse desaparecido tão cedo.
Como deram a volta àquela situação para conseguirem chegar ao título naquela época?
A volta que demos foi fazer tudo para ganhar os jogos e para lhe oferecer o título. Ganhar esse campeonato foi a melhor coisa que aconteceu, porque se havia jogador que o merecia era o Rui Filipe.
Vê no F. C. Porto atual reflexos dos tempos em que jogava?
Vejo, mas é preciso dizer que, antes de ganhar, o F. C. Porto passou muitos anos sem o conseguir, mesmo com grandes equipas e grandes jogadores. Quando comecei a jogar falava-se que ao passarmos a ponte D. Luis já íamos a perder 2-0 e era mesmo assim. Uma vez fomos jogar ao Amora e aos 15 minutos estávamos a perder 2-0, com dois penáltis em que, se houve faltas, aconteceram dois metros fora da área. Sou desse tempo. Isto levou uma reviravolta quando o sr. Pedroto e o presidente Pinto da Costa fizeram uma dupla capaz de mudar tudo. A guerra que eles fizeram contra Lisboa, ou seja, contra os dois clubes da capital, dava-nos mais força para lutar contra a forma como éramos tratados em vários campos.
Passadas quase quatro décadas, Pinto da Costa continua a liderar o clube. Alguma vez pensou que ia ficar tanto tempo?
Nunca penso nisso. O presidente tem a idade que tem, mas todas as vezes em que estamos juntos ele continua a ser a mesma pessoa e a falar da mesma maneira. Ele está bem de saúde e esperemos que assim continue para aqui andar ainda muitos anos. Será sinal que o F. C. Porto estará mais perto de ganhar do que de perder.
Sérgio Conceição já vai na quinta época como treinador do F. C. Porto. É o homem certo no lugar certo?
Temos essa sorte. Ele, mais do que ninguém, consegue passar a tal mística que nós tínhamos. Claro que não vai ganhar sempre, mas para mim é o homem certo e gostava de o ver muitos anos à frente da equipa. É uma pessoa que conhece o futebol, conhece o clube, sabe o que este clube quer e ele, mais do que ninguém, gosta de ganhar.
O que recorda do ano em que jogou com ele, em 1996/97?
Ele é que jogou comigo... Recordo a forma como jogava, como queria ganhar os jogos. Eu gostava muito de ganhar, mas ele também. Não vou dizer que somos iguais, mas penso que somos semelhantes na forma como vivemos e sentimos o F. C. Porto.
A posição de lateral direito deu dores de cabeça ao clube nos últimos anos. João Mário está agora a jogar, tem potencial para ser bem sucedido?
Neste momento, temos um jogador jovem e das camadas jovens a jogar, que é o João Mário, e eu fico satisfeito, mas ele não pode adormecer. Quem adormece num clube como este está mais para sair da equipa do que para continuar.
Jogar com um dedo partido e pintar a meia de preto para disfarçar e continuar a jogar, como o João Pinto fez, ainda seria possível hoje?
Não sei. Isso depende do espírito de sacrifício de cada um. Eu não dava baldas, queria era jogar. No meu tempo, o F. C. Porto tinha outras opções, mas eu se pudesse ia sempre lá para dentro. Se saísse, amanhã jogava outro, jogava bem e eu não podia facilitar. Uma vez, numa Supertaça com o Estrela da Amadora, afundaram-me a cara e tive de ser operado numa segunda-feira, mas no domingo a seguir estava a jogar. Eu arriscava, mas era a minha maneira de ser. Não dava baldas nem aos colegas de equipa.
Chorou na bancada do Dragão Arena a festejar um título. Mais do que ex-jogador, é um adepto mesmo apaixonado pelo clube?
Apaixonado e, acima de tudo, estava no lugar de muita gente que sofre pelo F. C. Porto, contra tudo e contra todos. Quem não é portista, não sabe o que isso é. Só nós é que sabemos o que é que custa o F. C. Porto ganhar um campeonato. Tanto vale ser no andebol ou no futebol, quando isso acontece sente-se sempre mais alguma coisa e foi isso que se passou. Estava a chorar de alegria por todas as pessoas que estavam na bancada e pelos que, em campo, conquistaram o título.
Foi o capitão mais emblemático da história do clube?
Não. Há muita gente que diz isso, mas o mais importante foi chegar ao fim da carreira e ver que as pessoas, quando me encontram na rua ou no estádio, sentem por mim um carinho enorme. Isso é que me dá alegria porque é sinal de que tudo o que fiz valeu a pena. Quando assim é, está tudo dito.