Jorge Braz lembra o momento em que percebeu que o Mundial de futsal não fugia a Portugal.
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Menos de uma semana depois de Portugal ter conquistado, pela primeira vez, o Mundial de futsal, Jorge Braz faz o balanço de uma campanha extraordinária. O timoneiro da equipa das quinas, que já era campeão da Europa, diz que é muito bom ter dois títulos para defender.
Já lhe caiu a ficha sobre o que realmente significa este título mundial?
Sim. Eu disse muitas vezes nos últimos anos que para sermos os melhores da Europa e do Mundo teríamos de trabalhar mais do que muita gente. Hoje, tenho a consciência de que valeu a pena. Conseguimos mesmo ser melhores do que todos neste Mundial e fazer algo notável. O sentimento é de satisfação. Vale a pena dedicarmo-nos aos objetivos a que nos propomos.
O que é que a seleção tem agora que não tinha no passado e que impedia estas vitórias?
Temos uma base de sustentação maior. Sei que as pessoas têm muita tendência de olhar apenas para a seleção, mas esta equipa é o topo da hierarquia de toda uma estrutura. A visão estratégica da FPF sustentou todo o processo e hoje percebemos que temos a qualidade que sempre tivemos. Portugal sempre teve jogadores e seleções de topo mundial. Nem sempre se ganha, mas para estarmos mais perto de ganhar de forma contínua é preciso essa sustentação de que falei.
Houve uma imagem marcante, no jogo com a Espanha. O Jorge Braz anda mesmo há 20 anos a dizer que Portugal é melhor do que eles?
A Espanha é uma equipa fantástica, já venceu Mundiais e Europeus, e nós sempre quisemos chegar a esse patamar. Aprendi isto com o meu antecessor, Orlando Duarte, que o dizia constantemente. Ele preferia perder, mas jogar olhos nos olhos, tentando chegar lá. Naquele momento específico, senti que estávamos muito mais perto de vencer aquele jogo do que a Espanha e quis espicaçar. Disse o que me ia na alma de forma genuína porque nós somos mesmo melhores do que eles e já o tínhamos provado na final do Europeu.
Foi nesse jogo que percebeu que Portugal podia chegar ao título?
Eu sabia que o título iria depender muito do nosso crescimento ao longo da competição, mas quando fomos para estágio já tinha a forte convicção de que íamos ficar até ao fim. Podíamos ter algum percalço, mas estava confiante de que desta vez íamos chegar a uma medalha. Faltava saber qual era. Depois de vencer a Espanha e de perceber que o trajeto estava a ir como queríamos, não tive dúvidas. Só uma medalha já não chegava. Teríamos de ser ambiciosos e pensar no troféu porque havia condições para isso.
"Ainda bem que temos dois títulos para revalidar"
Como é que reage a quem diz que a seleção foi bafejada pela sorte durante o Mundial?
Nem tenho resposta para isso. São opiniões que temos de respeitar. Eu olho muito mais para os sentimentos positivos. Só quem lá está sabe da dificuldade que é jogar um Mundial. Dizem que foi sorte porque a Argentina teve uma bola ao poste no último segundo. Nós tivemos duas antes. Olhamos sempre para as bolas ao poste dos outros e não para as nossas. Foi sorte? Nós não acreditamos nisso. Acreditamos no nosso trabalho.
Como é que vai defender, não um, mas dois títulos?
Não é fácil, mas é muito motivador. Era bem pior se ainda andássemos à procura dos títulos. Somos campeões da Europa e do Mundo e vai ser um problema? Problema era não ter títulos. Quando ganhámos em 2018 disse-se que ia ser difícil repetir e ganhámos logo o seguinte. Claro que não vamos ganhar sempre porque o futsal está a ter um grande desenvolvimento em muitos países. Mas queremos estar sempre nas decisões, nas meias-finais e nas finais. Temos condições para isso. Ainda bem que temos dois títulos para revalidar.
A verdade é que o Europeu está já aí à porta, no início de 2022...
Ainda não olhei bem para essa fase final. Na próxima semana, vamos para o sorteio. Neste momento, estou mais preocupado com a seleção feminina e de sub-19, que iniciaram os estágios no domingo passado e também vão ter Europeus. Quando conhecermos o sorteio, o grupo, os pavilhões, aí teremos de começar a dar o clique novamente, a organizar tudo para nos focarmos no Europeu.
Conta com Ricardinho?
Essa é uma decisão do Ricardo e a que tomar eu estarei ao lado dele a 100%. Essa é a única coisa que está clara. Não há timings. Ainda estamos todos aqui na fase do festejo e não falámos sobre isso.
Como define o grupo de jogadores que teve no Mundial?
É uma família com uma capacidade fabulosa de superação e de auxílio de uns aos outros. A superação dos momentos difíceis e a alegria que se foi vivendo no dia a dia foi o que caraterizou mais esta seleção, para além da qualidade brutal dos jogadores. As pessoas falam sempre da lengalenga da motivação, mas não é isso. É com muita honestidade que digo que os melhores do Mundo são mesmo os meus. Temos jogadores com qualidade para jogar em qualquer liga, em qualquer clube ou em qualquer seleção. Não tenho dúvidas. Mas, claro, há sempre quem diga que os outros é que são bons.
A explosão ao mais alto nível de Pany Varela, eleito o segundo melhor jogador do Mundial, surpreendeu-o?
Não. Ele já tinha estado muito bem durante a qualificação para o Europeu. Quem trabalha com estes jogadores diariamente não pode ficar surpreendido. O Pany sabe muito bem a minha opinião sobre ele. Tem uma qualidade fabulosa em várias áreas do jogo. É um jogador fantástico, como são outros sobre os quais não se fala tanto porque não fizeram golos. Houve ali jogadores com um rendimento brutal.
Um deles foi o guarda-redes Bebé, de quem se chegou a dizer que estava acabado...
Ele foi a imagem de toda a seleção. Independentemente das dificuldades, conseguiu superar-se todos os dias. Como já referi várias vezes, o Bebé é um exemplo de vida. Eu próprio não o convoquei muitas vezes, mas desta vez foi só olhar para a época que ele fez no Leões de Porto Salvo. A forma como ele se preparou para o estágio e para este Mundial ajudou-nos imenso. O Bebé, o Vítor Hugo, o André Sousa, que quando ficou de fora era o que mais se ouvia na bancada, e todos os outros.
Nas reações ao título, foi muito salientada a popularidade do futsal. Qual a razão para ser uma modalidade tão popular?
O trabalho realizado pela Federação tem aumentado a relevância social do futsal. As pessoas não têm bem a noção do aumento de competições nacionais nos últimos anos. É a tal base. Tornar o futsal a modalidade de pavilhão mais praticada foi um objetivo claríssimo há muitos anos. Ver os clubes, como o Benfica e o Sporting, alcançar títulos europeus, tal como agora a seleção, alavanca tudo isso. Mas os nossos meninos e meninas têm de continuar a ter oportunidades de experimentar e de praticar a modalidade. Caso contrário, isto vai-se esfumar.
Será esse o caminho para haver mais Ricardinhos no futuro?
O Ricardo é um ícone mundial. Mas se olharmos para os jogadores de topo nos atuais escalões de formação, Portugal tem lá muitos. Isso é um excelente indicador. Nós temos jogadores que não foram ao Mundial, por opção minha, e que são dos melhores.
O fim da carreira dele não o preocupa?
Não. Quando acontecer, Portugal não terá esse ícone, mas terá uma competência elevadíssima.
Que reações teve de agentes de outras modalidades ao título conquistado na Lituânia? Vimos Fernando Santos a abraçá-lo na Cidade do Futebol...
Dividimos muitas vezes o mesmo espaço e o mister Fernando Santos tem sempre uma palavra de incentivo, com aquela simpatia e a forma de estar fantástica. Aquele abraço que demos foi muito especial, mas todos os selecionadores das modalidades coletivas enviaram mensagens igualmente especiais. O Hugo [Silva], o Paulo [Jorge Pereira], o Mário [Narciso], o Renato [Garrido]... Ao Renato eu tinha perguntado como é que ele fez para ganhar à Argentina na final do Mundial de hóquei em patins. Ele já sabia como era.
Como foi vir do Canadá para Trás-os-Montes aos oito anos, para começar uma vida nova?
O meu pai faleceu no Canadá e a minha mãe optou por regressar. Nem senti muito bem a transição. Adorei a escola primária aqui, bem diferente da do Canadá, que tinha quatro campos relvados de futebol. Aqui tínhamos um bocadinho de terra batida para jogar. Do Canadá, as recordações que tenho são da família, tios e primos, que ainda estão quase todos lá.
Começou por jogar futebol?
Sim, a jogar na aldeia. Com 13 anos, já jogava na equipa dos grandes, como lhe chamávamos. No ano seguinte, fui a Chaves e pedi para me deixarem treinar. Aceitaram e fui viver sozinho aos 14 anos. Fiz todos os escalões de juvenis e juniores, assinei contrato com os seniores. Ainda fiz uma época na 1.ª divisão, mas depois surge a faculdade, onde descobri o futsal nos mundiais universitários. A paixão começa aí.
A mudança foi inevitável?
Foi. Entrei para a faculdade no plantel sénior do Chaves, tentei conciliar, e nisso o mister José Romão foi fantástico comigo. Incentivou-me a ir sempre às aulas. Para me manter em forma, jogava futebol de cinco nos campeonatos universitários até que houve uma convocatória para um Mundial e eu fui chamado. Dois anos depois, houve outro a que ainda fui como guarda-redes. Deixei de jogar futebol. Fiz uma época de futsal em Chaves e depois iniciei o processo como treinador em Braga, na Universidade do Minho.
Ser treinador era algo em que já tinha pensado?
A experiência do Mundial Universitário marcou-me. Pensava nas razões que levavam o selecionador, Orlando Duarte, a mandar-nos fazer isto e treinar aquilo. Era a minha área e a curiosidade sempre existiu. Depois, foi seguir a área do treino e da liderança.
A ida para a Federação foi um percurso natural?
Tinha um trajeto nas seleções universitárias com Orlando Duarte, depois passei a adjunto dele. Quando ele saiu, eu disse-lhe que saíamos os dois, mas a insistência dele e da Federação foi enorme. Acabei por continuar o percurso e o trabalho que vinha a ser feito.
Está na cadeira de sonho ou há outros sonhos por realizar?
Já disse muitas vezes que me sinto como peixe na água, porque aqui na Federação vive-se exigência e é preciso trabalhar muito. Tem sido fantástico e eu vejo isto etapa a etapa. No desporto, vivemos de momentos. Eu percebo quem tem objetivos a longo prazo e quem quer chegar aqui ou ali, mas há gente que se preocupa muito com o futuro sem olhar bem para o presente. O meu contrato vai até ao próximo Mundial, mas o que tenho de fazer agora é olhar para o Europeu, mais nada.
Como é o Jorge Braz longe das quadras?
O tempo fora do trabalho é tão reduzido que tem de ser para a família, estar em casa, fazer caminhadas ao ar livre. Adoro fazê-las aqui perto do Gerês, que tem espaços fantásticos. A minha aldeia, em Trás-os-Montes, também os tem. Caminhar e estar em casa sossegado com a família são os melhores passatempos que tenho.