O título europeu, comemorado há uma semana pela seleção de futebol de praia, foi o quinto grande troféu conquistado por Mário Narciso, selecionador português desde 2013. Setubalense de gema, é admirador de Madjer e do amigo José Mourinho. Além de selecionador, trabalha no Vitória de Setúbal, na gestão de sócios, e todos os meses vai a casa da mãe do "Special One" receber o dinheiro das quotas de sócio de toda a família.
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Tem no currículo, entre vários troféus, um cetro mundial e dois europeus. Qual é o segredo?
É o trabalho, mas, na verdade, não há equipa nenhuma que não trabalhe. O segredo passa pela qualidade dos jogadores. Sem isso, podemos ser os maiores trabalhadores do mundo, mas não se consegue nada. A vontade e a entrega dos jogadores, alguma sorte, já que no futebol de praia a bola devido à areia nem sempre segue a direção desejada, foram a chave do sucesso. Somos os segundos do ranking mundial, uma honra enorme, apenas atrás do Brasil.
O papel dos jogadores é importante, mas o selecionador também conta...
Claro que sim, também tem a sua quota parte, não posso ser exageradamente humilde. A modalidade tira-me horas de sono, pois eu e a minha equipa levamos muito tempo a observar os adversários, a ver como os podemos enganar [risos].
Que tipo de líder é?
Recentemente, nas Quinas de Ouro, o Madjer disse que eu era um pai para os jogadores. Eu disse que não, porque a vida está difícil para ter estes filhos todos [risos]. Os jogadores veem-me com muito carinho, mas sabem que quem manda sou eu. Isso nem se questiona.
Há uns anos, o futebol de praia era praticado por ex-jogadores de futebol. A realidade mudou?
Completamente. Hoje, só tenho um jogador que pratica futebol de 11 (André Lourenço, do Vieirense), mas até ele está a pensar em dedicar-se totalmente a esta modalidade. De resto, é pessoal que se dedica apenas a isto. O futebol de praia está a crescer cada vez mais, nota-se que aparecem mais valores. Às vezes criticam-me por não apostar nos mais novos, mas não se pode tirar uma equipa e meter outra totalmente diferente.
Tem um jogador de 18 anos que se sagrou campeão europeu.
O Rúben Brilhante! Uma coisa nunca vista no futebol de praia. Estou muito satisfeito com o meu grupo. Tem uma média de idades de 24 ou 25 anos e há um mais velho, o Madjer.
O eterno capitão...
Não, não é eterno, porque ele está em fim de carreira. Sei a data em que vai colocar um ponto final, mas cabe a ele anunciá-lo. Tem 42 anos.
Madjer é uma imagem de marca do futebol de praia português?
Sem dúvida. Quando vamos para as competições, até podemos levar jogadores muito bons, mas todos acabam a perguntar pelo Madjer. É o mesmo que se passa com o Cristiano Ronaldo. Daqui a três ou quatro anos, é capaz de já não ter o mesmo rendimento, mas todos continuarão a perguntar por ele e a ser chamado à seleção.
Qual foi a vitória mais marcante da sua carreira?
O Mundial, em 2015. Um título de campeão do Mundo é um título de campeão do Mundo.
Os jogadores conseguem hoje viver só do futebol de praia?
Vou falar dos meus... Oitenta por cento vivem só da modalidade. No futebol de 11, um atleta pode jogar em dois clubes diferentes, mas no futebol de praia não há limite, por ser uma atividade quase sazonal. Por exemplo, no campeonato português só há jogos durante quatro meses e os jogadores não podem estar tanto tempo sem competir. Vão para a Rússia, que tem uma liga muito forte, para Itália ou outro país durante algumas semanas ou meses.
Há ainda muito para mudar no futebol de praia?
A liga portuguesa devia ter mais tempo de competição, pois quatro meses é pouco. Mas sei que a Federação Portuguesa de Futebol está a trabalhar para fazer um campeonato diferente.
Falemos de si. O Mário Narciso foi futebolista durante muitos anos - entre os quais, 14 no V. Setúbal -, e também treinador no futebol de 11. Como se deu a mudança para o futebol de praia?
Trabalhei na escola de futebol do Humberto Coelho durante 10 anos até que em 2008 apareceu um convite do V. Setúbal, que estava a lançar o futebol de praia. Foi um acaso. Na brincadeira, jogava futebol na praia, eles sabiam disso, e aceitei ser o treinador. Durante esse período fui campeão nacional e tenho outro título de elite.
Até que em 2013 se torna selecionador nacional...
Por influência de Humberto Coelho, atual vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF). A modalidade passou a estar a cargo da FPF em 2012 e eu entrei a seguir. Nesse ano, procuravam um selecionador com o UEFA Pro Nível 4 e eu tinha-o. Aliás, eu e ele tirámos o curso na mesma altura.
É o seu padrinho...
Os gajos dizem lá isso na FPF... [risos]. Na verdade, o Humberto é um grande amigo, do coração. Se pudermos trabalhar juntos, melhor.
O futebol de praia é um bom filho da FPF?
Sim. Tudo o que necessito para estágios, locais de estágio, materiais, nunca me foi vedado nada. Têm-me dado todas as condições.
Em breve, vai ser construído um campo de futebol de praia na Cidade do Futebol...
Em 2021, creio que estaremos a treinar em casa. Neste momento, está a ser construído o hotel e depois arranca o pavilhão para o futsal e o nosso campo.
Já ganhou tudo. O que ainda o motiva?
[risos] Vencer o próximo Mundial. A cara de quem ganha nunca é igual à de quem perde e nós queremos andar sempre felizes. Mas também sei perder. Quando vejo que houve mérito do adversário, dou-lhe os parabéns.
Além de ser selecionador, tem outra profissão...
Trabalho no Vitória (de Setúbal), no departamento de gestão de sócios. Se me perguntarem se é trabalho ou amor ao clube, se calhar é amor. Quem tinha este cargo era o meu pai, mas ele adoeceu e fiquei com o trabalho dele. Quando o meu pai faleceu, disseram-me para continuar e já lá vão 17 anos. Se calhar não precisava de continuar, mas não vou deixar. O Vitória é sempre o Vitória.
Mário Narciso, José Mourinho e Bruno Lage têm em comum serem de Setúbal. Há uma fábrica de campeões na cidade ou é apenas coincidência?
Não sei se há uma fábrica... Em Setúbal, sei que temos o rio Sado, boa praia, boa gente e boa comida [risos]. Se calhar, é coincidência, porque nas outras terras também existem pessoas com muito valor.
Vai deixar um legado em Setúbal?
O facto de me terem atribuído a medalha da cidade já foi uma grande honra. Posso morrer descansado.
José Mourinho é seu amigo?
É como um irmão e a casa da mãe do Zé é como se fosse a minha. Conhecemo-nos há muito. Ele tinha 14 ou 15 anos e, quando o pai dele era meu treinador no Amora, já observava os adversários. É um produto do trabalho.
Toda a família Mourinho é sócia do Vitória, certo?
Sim. Vou a casa da mãe dele todos os meses, porque tenho de ir receber o dinheiro da quotização, sou empregado do Vitória. São pagas quotas de umas 12 pessoas. Quanto é? Não gosto de falar disso, o importante é a sua atitude. Pouca gente sabe, mas o Zé faz muito pelo clube, na sombra. Exemplos? Não posso contar. Só digo que é um grande amigo do Vitória, embora às vezes algumas pessoas não o reconheçam.
Voltando a si, a sua família compreende que, aos 65 anos, tenha dois empregos?
[silêncio] Não ia falar disso mas já que você faz a pergunta... Não é fácil. A minha mulher não anda há 12 anos, teve um problema e deixou de andar. Tem de ser acompanhada, alguém tem de a levantar, deitar, vestir, despir. Quando o Humberto me ligou, tive de ponderar, mas graças à grande união que existe na minha família eu consegui dizer que sim. Quando vou para fora, a minha filha e também o meu filho ajudam-nos.
CV Mário Narciso
Data de nascimento: 04/12/1953 (65 anos)
Naturalidade: Setúbal
Troféus como selecionador de futebol de praia: Mundial (2015), Europeu (2015 e 2019), Mundialito (2018 e 2019)