
Técnico português orientou os sul-africanos dos Sundowns nos Estados Unidos
Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP
Miguel Cardoso faz o balanço de dois anos a fazer história no futebol africano, depois de uma participação impactante no Mundial de Clubes.
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Miguel Cardoso atravessa o melhor período na carreira, após uma paragem prolongada. Nas duas últimas épocas, foi campeão na Tunísia e na África do Sul, atingiu a final da Liga dos Campeões Africanos em edições consecutivas e acaba de fazer do Mamelodi Sundowns uma das equipas revelações do Campeonato do Mundo de Clubes. Aos troféus e ao reconhecimento internacional, junta uma experiência de vida “transformadora” em Pretória, aonde voltará para cumprir a segunda temporada no clube.
O que ainda lhe vai na alma em relação ao Mundial de Clubes?
Muito orgulho. Primeiro, por ser um dos quatro treinadores portugueses a lá estar e estar presente numa competição com 32 das melhores equipas do Mundo, com a curiosidade de, creio, ter sido o único treinador a apurar uma equipa [Espérance Tunis] e a participar por outra. Depois, orgulho pelo que o Sundowns fez. Queríamos mostrar o nosso melhor e isso foi conseguido. A nossa participação teve reconhecimento e muito impacto internacional e poder levar ao Mundo um clube que tem um nome estranho, que muita gente não conhece, apesar de ser um clube enorme em África, foi fantástico.
Que razões encontra para esse reconhecimento global?
Fizemos uma época fantástica, conquistámos o título, batemos recordes, disputámos a final da Liga dos Campeões, mas não vencemos esse troféu nem jogámos o futebol que somos capazes nos dois jogos da final. Ficou uma dor grande, mas logo estabelecemos o compromisso de ir ao Mundial e jogar o nosso jogo em todos os jogos, seja contra quem for, e conseguimos ser Sundowns, uma equipa com um futebol dominador, bonito, atrativo, pressionante, condizente com as tendências atuais do jogo. Chegar ao Mundial como um estranho, conseguir ganhar um jogo, empatar com o Fluminense e jogar cara a cara com o Borussia Dortmund teve impacto, as pessoas reviram-se na atitude atrevida, mas convicta, da nossa equipa.
Entre esses elogios, há algum que o tenha marcado?
Sim. Recentemente, os meus presidentes contaram-me que se cruzaram com o [Gianni] Infantino, presidente da FIFA, e com o Arsène Wenger, e receberam de ambos mensagens positivas em relação à nossa participação. Também houve comentadores em Espanha e Inglaterra a elogiarem o nosso desempenho e isso é algo que me deixa muito feliz, dar este reconhecimento internacional ao clube.
E em Portugal?
Ia falar nisso. Porque creio que pela primeira vez em Portugal houve algum reconhecimento do que tem sido o meu trabalho em África, mais do que quando fui campeão ou disputei as finais da Champions, porque ainda se olha para o futebol africano como um futebol menor e isso é um erro enorme: em África há equipas de extrema qualidade, há muito talento e campeonatos muito interessantes. Mas quando o Miguel Cardoso e o seu Sundowns jogam com o Fluminense e faz um jogo bonito, joga com o Dortmund e domina as estatísticas e ganha ao Ulsan, isso leva as pessoas a pensar que consigo meter as equipas a jogar neste patamar e a ganhar.
O Mundial está longe de ser consensual e recebeu várias críticas. Qual a sua opinião?
Para nós e para o futebol africano e sul-americano, foi uma grande oportunidade para nos mostrarmos, porque uma competição desta dimensão ajuda a mudar a perceção das pessoas. Por outro lado, há claramente um conflito de calendário e o início da próxima época pode ser penoso para muitas equipas que participaram no Mundial, inclusivamente para o Sundowns. Nós estamos de férias e os nossos adversários já estão a treinar… Pondo tudo na balança, acredito que, para nós, foi extremamente importante, ainda por cima com as boas exibições que fizemos.
O bom Mundial do Sundowns foi o culminar da melhor época da sua carreira?
Acredito que sim. Quando se ganha títulos é quando se percebe que se passa para outra dimensão. Obviamente que para ganhar esses títulos é preciso estar em contextos que tenham recursos para isso e quer no Espérance Tunis quer no Sundowns isso acontece. Ter alcançado títulos, finais de Champions e prémios individuais acrescenta uma mais-valia pessoal de imposição que não tinha antes e que me permite olhar para o futuro de outra maneira e cimentar-me como um dos treinadores de topo do futebol africano. A sensação de competência de um treinador é muito maior quando ganha títulos.
Vem de dois anos seguidos a ser campeão, mas também de duas finais seguidas perdidas na Champions. Pesa mais a infelicidade dessas derrotas ou a felicidade dos títulos?
Quando levámos uma equipa a uma final e passámos obstáculos tão grandes para lá chegar e ganhámos a equipas tão boas, já não é possível perder, já se ganhou muita coisa. O que é possível é ganhar ainda mais e isso ainda não consegui. Claro que perder a final deixa um sabor muito amargo, mas não olho para o que se perde com o peso de derrotado. Foram dois trajetos fantásticos em que nos sentimos vencedores.
Teve convites para deixar o Sundowns?
Sempre tive muito claro que quero continuar neste projeto. Sinto-me muito apaixonado pelo futebol africano e há uma ligação muito forte de objetivos com a administração, de formas de estar e partilha de valores entre mim e o clube, e isso levou a que todas as abordagens que tive nem sequer as aprofundasse. Temos mais um ano de contrato e partimos muita energia para a nova época.
Que formas de estar e que valores são esses?
O Sundows é um clube de respeito, de valores bem enraizados – inclusivamente, nas camisolas tem escrito “Ubuntu-botho”, que é uma expressão que tem a ver com relações de respeito, de ajuda, de solidariedade e de amizade. Nós rezamos juntos, limpamos os balneários antes de sairmos… Há uma partilha muito grande de princípios e valores de vida que vêm de cima e nos quais nos sentimos todos muito bem. É uma forma de estar no desporto diferente, que também passa para as bancadas, onde o futebol é celebrado, é dançado, é cantado. Mas isso nada tira à exigência de ganhar, é apenas a cultura a misturar-se com o jogo.
Isso surpreendeu-o?
Surpreendido não, porque já sabia que era assim. Mas depois do nível de agressividade que vivi no futebol tunisino, onde a rivalidade é levada ao extremo, o impacto que senti foi claramente acima do que esperava. Não imaginava o impacto que esta forma de estar traz para o dia a dia e para a vida. Faz-nos melhores pessoas, mais respeitadores, mais tolerantes, mais agradecidos, mais conscientes dos problemas dos outros. É transformador. Daí eu também me sentir muito bem lá: há exigência, mas a forma como se vive essa exigência é muito particular.
A África do Sul é o sétimo país onde já trabalhou, depois de Portugal, Ucrânia, França, Espanha, Grécia e Tunísia. O objetivo é continuar a alargar essa lista ou estabilizar?
Esse percurso bate muito naquilo que sou. Em Portugal, por exemplo, vai ser muito difícil voltar a trabalhar porque o nível a que estou atualmente só os melhores clubes portugueses conseguem igualar, mas também porque as experiências que vivo são de um enriquecimento tão grande, que, depois de esgotar o projeto Sundowns, algo que espero que demore muito tempo, quero continuar a experimentar culturas, formas de estar e futebóis diferentes. Sou alguém aberto à diferença, que desfruta da diferença e isso proporciona oportunidades permanentes. Chegar à África do Sul e sentir a liberdade da vida animal foi extraordinário e marcou-me ao ponto de, agora, ser incapaz de entrar num jardim zoológico. Conhecer o Soweto [cidade estabelecida em 1963, durante o Apartheid, para juntar nos mesmos bairros as pessoas de raça negra] e perceber como a sociedade sul-africana se transformou desde aí é marcante. No futuro, vou procurar muito mais isso do que voltar para contextos que já domino.
No seu currículo, também saltam à vista passagens fugazes e consecutivas por Nantes, Celta de Vigo e AEK. Sente que cometeu erros nessa fase?
Não, nunca senti que errei nas opções que fiz. Senti, sim, que os contextos que encontrei nesses clubes não permitiam o rendimento esperado, mas hoje seria mais capaz de gerir esses contextos porque sinto que sou mais treinador. O importante é que a imagem que o treinador Miguel Cardoso deixou na cidade de Nantes e nos adeptos do Nantes, na cidade de Vigo e nos adeptos do Celta é extremamente positiva. Não olho para estes projetos como insucessos, mas como parte do processo de crescimento. Todos os treinadores são marcados por momentos positivos e negativos e no currículo dos meus colegas também não vejo só flores.
Depois ainda voltou ao Rio Ave, que acabou despromovido, e seguiu-se um período de mais de dois anos parado. Foi forçado ou propositado?
Houve um ano que fui forçado, devido à forma como fui dispensado do Rio Ave. Tive de ir para tribunal e o processo arrastou-se. Depois disso, dediquei-me a encontrar o contexto em que sentisse que podia jogar para ganhar e isso implicou esperar o momento certo. Acho que muitos treinadores cometem erros precisamente por não esperar o suficiente. As experiências anteriores também me ajudaram a perceber que precisava de ter mesmo a certeza de onde ia entrar. Hoje tenho a certeza plena de que foi a melhor coisa que fiz.
