Miguel Maia garante que vai continuar a jogar ao mais alto nível, na próxima temporada.
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É a paixão pelo voleibol que o move, confessa, numa carreira ímpar, na qual soma 33 títulos, ao serviço de Académica de Espinho, Sporting de Espinho, Esmoriz, Reima Crema e Sporting. Dos tempos em que dormia com o equipamento vestido à quase glória nos Jogos Olímpicos fica a certeza de que a modalidade marcou a sua vida, e vice-versa. Um exemplo de que, no desporto, a glória e o desportivismo podem andar de mãos dadas.
Disse por diversas vezes que nunca viveu à sombra do que ganhou. Aos 50 anos, ainda é assim?
Claro que sim. Sempre fui um atleta que gostou de treinar e de jogar. Estive inserido em vários grupos e isso foi o que sempre me fez mover para conseguir sempre mais e ter vontade em treinar e jogar. Por isso, não fazia muito sentido, neste momento, prosseguir a minha carreira se não sentisse a mesma paixão.
No desporto, um atleta com 34 anos é muitas vezes visto como estando perto do fim da carreira. O Miguel acaba de cumprir a 34.ª temporada como sénior. Tem noção da magnitude dessa marca?
Tenho vindo a ter essa noção, porque não é normal um atleta jogar com a idade que eu tenho. Foi um desenrolar de vários anos com muita dedicação, empenho, preocupação, muito descanso e uma boa alimentação. Tive sempre cuidado com o meu corpo e também a sorte de não ter tido grandes lesões. A partir do momento em que me tornei profissional e percebi o que queria para a minha vida fui cuidando do meu corpo e da minha carreira da melhor forma, para me poder apresentar sempre bem a cada época. Mas obviamente que nunca projetei poder continuar a jogar com esta idade.
ue cuidados tem para continuar ao mais alto nível aos 50 anos?
Essencialmente, é o descanso. Isso é fundamental para poder estar em boas condições para poder treinar e jogar. Depois, trabalho com fisioterapeutas que já me acompanham há muitos anos. Sempre que tenho necessidade, recorro a eles. Eles já conhecem o meu corpo, o que ajuda. Nada mais do que isso.
E a motivação, é a mesma de há 34 anos?
Sim, até porque, se formos a ver, tenho mais a perder neste momento do que propriamente a ganhar. Não sou o mesmo atleta de há dez anos. Não tenho a mesma força, a mesma velocidade ou o mesmo poder de impulsão, mas ainda tenho a mesma paixão pela modalidade e sinto-me bem. Como a nível mental tenho o objetivo de fazer crescer os grupos onde estou inserido, para ajudá-los a alcançar os seus objetivos, sinto-me em condições de continuar e devo aproveitar, porque é o que gosto de fazer.
Os seus colegas brincam consigo pelo facto de continuar a jogar aos 50 anos?
Muitos dizem que é inacreditável. Os meus colegas dizem-me que, pela maneira como treino, e no Sporting treinávamos todos os dias sendo que nunca faltei a qualquer treino, acham que não é normal, mas eles acompanham o meu dia a dia e veem que consigo fazer as coisas bem. Continuo a ganhar títulos, a jogar ao mais alto nível e em plenas posses das minhas potencialidades.
Ainda se lembra do primeiro treino ou do primeiro jogo que fez?
Lembro-me dos primeiros treinos, tinha seis ou sete anos. Treinávamos à quarta-feira e ao sábado, e eu lembro-me que, à sexta-feira, dormia com o equipamento vestido. Tinha muita vontade em treinar e aproveitar o momento, gostava de estar em grupo e praticar desporto. Também joguei andebol, futebol e andei no atletismo. Poder praticar várias modalidades na rua, porque era assim que passávamos a nossa infância, ajudou-me a mim, tal como a quase toda a gente da minha geração. Até aos 14 anos, consegui conciliar tudo, sempre tendo o voleibol como a principal modalidade.
Tinha ídolos quando começou a jogar voleibol?
Gostava muito de ver os jogadores das equipas seniores e da seleção nacional. O Espinho sempre foi uma equipa que lutava pelos primeiros lugares e eu via quase todos os jogos. Gostava muito do Carlos Filipe, que era o distribuidor na altura, dos irmãos Castro, do professor Moreira e do Filipe Vitó. Eram grandes jogadores, nos quais me focava para poder ser como eles. Também gostava das seleções olímpicas brasileiras. O Brasil sempre foi uma potência. Admirava aquele voleibol porque era muito dinâmico e técnico, e eu caraterizo-me por ser um atleta mais ou menos assim.
O resto é história, com dezenas de títulos nacionais e uma conquista europeia, pelo Espinho. É uma marca distintiva no seu currículo?
Foi inesperada. Tínhamos a ambição de a ganhar, mas sabíamos que seria muito difícil, até porque não havia história de um clube português poder vencer uma competição daquelas. Foi a grande conquista do voleibol português de pavilhão a nível de clubes, um marco para a modalidade e para todos nós. Ficará guardada para sempre, ainda por cima pelo Sporting de Espinho, um clube histórico. Estivemos para o conseguir duas vezes, porque fomos duas vezes finalistas, mas só ganhámos da primeira vez. É um título que ficará guardado, mas não será o mais especial. Todos tiveram o mesmo empenho, dedicação e vontade. Não gosto de estar a particularizar um título em detrimento de outro. Felizmente, tive muitos e todos são importantes para a minha história.
Aos 50 anos, continua a enriquecer o palmarés. A conquista da Taça de Portugal fez da última época um ano positivo?
Para um clube grande como o Sporting, não. Devíamos ter tido outro tipo de comportamento nas competições todas. Tivemos a possibilidade de poder vencer a Supertaça e a Taça da Federação, mas perdemos ambas por 3-2. Fica um amargo de boca. Um clube como o Sporting obriga-nos a ganhar mais do que um título, mas foi mais uma taça que foi para o museu. Os projetos vão-se construindo assim, gradualmente, com conquistas aqui e ali. Há que pensar no futuro.
O que falhou?
Não tivemos capacidade para poder ganhar. Acho que merecíamos ter ganho a Supertaça. Já a Taça da Federação foi bem disputada, com uma equipa aguerrida e com ambição, que acabou por ser mais segura na parte final e venceu bem. O Sporting devia ter tido mais qualidade ao longo do ano para poder chegar a esses títulos.
Olhando para o currículo, o que lhe faltou ganhar?
Não me falta ganhar nada. Aquilo que eu quero é continuar a ter prazer para poder estar em projetos e ser uma pessoa que consiga contribuir para os fazer crescer e evoluir. Ainda me dá muito gosto fazê-lo. Agora, títulos? Qualquer um que venha é sempre importante. Resta trabalhar e ver o que vai acontecer no futuro.
Isso quer dizer que já superou os dois quartos lugares nos Jogos Olímpicos, em 1996 e 2000, no voleibol de praia?
Faz parte do desporto. Depois desses quartos lugares já ganhei muita coisa. Isso faz parte da vida de um desportista, ganhar e perder, festejar e ficar desiludido. Temos de estar habituados, porque quem vai à guerra dá e leva, já se costuma dizer. Podemos ganhar ou perder. Há que seguir em frente, porque isto é uma maratona.
Sempre encarou as derrotas dessa forma construtiva ou ficou a remoer algumas?
Fico a remoer. Obviamente que não gosto de perder, sou muito competitivo, mas sei perder. Quer ganhe, quer perca, no dia seguinte tudo volta a zero. Não fico a festejar os títulos durante muito tempo nem a remoer nas derrotas que tenho. Dói, mas logo a seguir começa um novo ciclo.
E agora, já sabe o que vai fazer na próxima época?
Não. Há algumas possibilidades, mas, neste momento, não tenho nada decidido.
Fala-se de um possível regresso à Académica de Espinho, onde joga o seu filho.
É uma possibilidade, não é a única.
Por falar nele, aquele cumprimento antes do último ponto no jogo da Taça de Portugal foi premeditado ou espontâneo?
Foi espontâneo. Aquela tinha sido uma semana intensa, com dezenas de entrevistas e toda a gente a falar desse acontecimento. Era, de facto, uma situação fora do normal. Foi o coração, a paixão, o amor e a vontade de abraçar e de passar o testemunho a ditar aquilo. Ele estava nervoso, porque teve uma semana muito atribulada, com umas 15 entrevistas, algo a que não estava habituado. Teve uma pressão gigantesca, ainda por cima a jogar contra o Sporting, foi tudo muito intenso. Foi um momento bastante emotivo, porque ele não contava com aquele abraço no final. É um momento que vamos guardar para sempre.
Vê no Guilherme um digno herdeiro da carreira que construiu?
Não quero que ninguém o veja assim. Quero que ele trabalhe e que tenha paixão pelo voleibol, por aquilo que faz. Cá estarei para o incentivar. Se se respeitar a ele próprio e seguir a carreira dele tem o meu apoio a 100%.
Jogar ao lado dele e com público nas bancadas será a melhor forma de se despedir voleibol?
Seria uma situação bonita, mas, neste momento, não há público, não penso em terminar a carreira e não sei para onde vou nem se ele vai continuar no clube onde está a jogar. É tudo muito prematuro. Que fique bem explícito que eu não vou fazer a minha última época da carreira. A partir dos 40 anos, toda a gente anda a dizer que vou jogar mais um ano. Enquanto me sentir bem e as pessoas quiserem que esteja presente e achem que eu possa ser uma mais-valia para os seus projetos cá estarei. Quando decidir deixar de jogar anunciarei a toda a gente.
Foi estranho jogar sem público?
Não existe a adrenalina de quando tínhamos muita gente no pavilhão. A concentração, a adrenalina, o arriscar e o viver o jogo eram muito maiores. Assim, parece que estamos a fazer um jogo-treino. Não é a mesma coisa, apesar de, de jogo para jogo, nos irmos habituando. Mesmo agora, nos jogos das finais ou nos dérbis, as coisas não tiveram o mesmo condimento de quando havia público.
Sente-se o melhor jogador português de todos os tempos do voleibol nacional?
Sinto-me um jogador realizado, que contribuiu muito para o voleibol português. Sinto que fui um atleta que serviu de exemplo para muitos jovens e sinto-me muito feliz por ter contribuído dessa forma. De resto, as pessoas falam nisso, devido ao palmarés que tenho. Agradeço, sinto-me feliz, mas o mais importante é sentir paixão pela modalidade e servir de exemplo para todos.
Já se imaginou sem o voleibol?
De maneira alguma. Cresci com o voleibol e os meus filhos também jogam. Irei sempre contribuir para a modalidade.
Chegou a ser treinador do Espinho, por um curto período de tempo. É algo que gostaria de fazer de forma mais efetiva?
Neste momento, sou atleta. Tenho essa possibilidade, porque tenho os cursos de treinador, mas só pensarei nisso mais para a frente. Enquanto sou atleta vou usufruir e aproveitar ao máximo. No desporto, não há nada melhor do que ser atleta. Ser treinador, dirigente ou colaborador não é a mesma coisa.
Já disse que não se imagina longe da modalidade. E o voleibol, está preparado para ficar sem o Miguel Maia?
Não sei. São várias décadas a verem-me jogar. O voleibol não vai morrer se eu o deixar, mas as pessoas poderão estranhar eu não estar presente. Espero que isso não aconteça, até para retribuir tudo o que o voleibol me deu.
Para além de jogar, o que faz?
Como treino de manhã e de tarde, os meus dias são passados a treinar e a descansar. Tenho dedicação total ao voleibol. Também estou a tirar um curso de gestão desportiva, mas ainda não acabei. É uma área que gosto, a dos eventos. Gosto de estar em organizações e de contribuir. Há dez anos, criei com o João Brenha uma academia de voleibol. Organizamos um torneio internacional, um dos maiores do mundo para jovens. Também temos uma escolinha de voleibol de praia, com cerca de 200 crianças, e criámos, no ano passado, um torneio de masters. Estou ligado ao voleibol, a organizações, a eventos e com certeza assim continuarei.
Sente que a pandemia impactou bastante no voleibol de formação?
O regresso já deveria ter acontecido há mais tempo. Deveria ter havido um bocadinho mais de flexibilidade no controlo dos atletas. O regresso veio tarde, mas aconteceu e as pessoas têm de estar precavidas para este vírus, que ainda não foi embora, para que isto não volte atrás. Seria catastrófico estar mais meses sem poder treinar. Esta juventude acabou por pagar bastante caro este ano de ausência, porque todos os dias de treino são importantes. Quando falamos de meses sem poder competir, principalmente naqueles que estão a iniciar-se na modalidade, isso acaba por ser uma dificuldade muito grande. No entanto, o importante é que tudo volte à normalidade. A partir daí, quem treinava a 50% tem de treinar o dobro para tentar ir recuperando da melhor maneira que for possível.
Se pudesse voltar atrás o que faria de diferente?
De diferente não diria, mas gostava de ter jogado mais anos no estrangeiro. Tive muitas propostas, mas o contrato que tinha com o Comité Olímpico de Portugal, por causa do voleibol de praia, e o compromisso que tinha com o João (Brenha) e o meu treinador não me permitiram fazer mais do que um ano. Foi uma experiência boa e, se pudesse, teria jogado mais anos no estrangeiro.
Todas as loucuras que fez pelo voleibol compensaram?
Não me arrependo de nada do que fiz. Houve vezes em que estava a jogar voleibol de pavilhão aqui e, nessa mesma madrugada, viajava para o México para jogar uma etapa do circuito mundial de voleibol de praia, em condições completamente adversas. O corpo paga muito essas viagens e as mudanças de jogo, de clima e de piso, mas foi a vida que eu escolhi. Foi o risco que corri e não me arrependo de maneira alguma. Lembro-me que, depois dos Jogos de Atlanta, eu e o João ganhámos alguns fãs. Passados dois anos dessa olimpíada, um casal dos Estados Unidos viajou até Toronto, no Canadá, para me ver jogar. Até levaram um álbum com fotografias minhas e recortes sobre mim. Isso sensibilizou-me muito.
Que legado espera deixar no voleibol nacional?
Um legado positivo, de dedicação, de entrega e de paixão. No fundo, é o que todos os jovens precisam de fazer, dedicar-se ao máximo e lutar por todos os sonhos até ao fim