Mais vida e menos futebol. José Mourinho, 50 anos, aceitou o repto do JN para uma entrevista exclusiva - a que respondeu por escrito. Sim, incontornável o futebol e as grandes polémicas, nas quais está, por regra, envolvido. Mas a exceção é ainda mais apetecível - o revelar do pensamento sobre o país que o viu nascer e jamais renega.
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É hoje, indiscutivelmente, um ícone de excelência de Portugal. Sente orgulho numa tal posição ou, atendendo à situação difícil do país, é obrigado a um esforço cada vez maior para explicar ao Mundo pertencer a um Portugal capaz de gerar cidadãos de sucesso?
Sou um português orgulhoso, mas que sofre a situação atual e que, ao viver no estrangeiro, percebe as críticas sarcásticas implícitas em muitos comentários acerca do meu país....
Para todos os efeitos, o José Mourinho é um emigrante de luxo. De longe, e também na qualidade de pai, como observa o facto de cada vez mais jovens serem obrigados a emigrar de Portugal em busca de um emprego?
O Mundo mudou e mesmo os jovens de países em situações diferentes procuram muito as experiências de vida que lhes podem dar o viver e trabalhar fora do seu país. Se quisermos, até antes do emprego, e na fase de formação académica, cada vez mais se ambiciona sair, tentar o intercâmbio, buscar a evolução que essas oportunidades e experiências podem dar. Agora, noutra perspetiva, o sair obrigado, o sair por não ter alternativa parece--me triste.
Continua a ser possível acreditar em Portugal? Por entre o debate sobre vários tipos de défice, que constrangimentos principais observa no país? E há uma fórmula para os resolver? Qual?
Acreditar! Se não formos nós a acreditar, quem o fará? Mas uma crença sem dúvidas, sem perguntas. A crença com momentos de frustração não acredito que possa existir. Fórmulas não as tenho, nem o atrevimento de me colocar numa posição política que me permita avançar com soluções. Se as tivesse, deixaria o futebol um par de anos para ajudar o meu país. Mas não, de político não tenho nada, só a perceção clara de que a situação está muito complicada.
Foi sempre, pelas palavras e atos, um combatente contra a chamada hipocrisia. Vale a pena? Ou sente, como uma vez referiu o atual primeiro-ministro, que os portugueses são piegas?
Depende. Lutar contra a hipocrisia como um princípio de vida vale a pena, porque te sentes bem contigo próprio. Lutar contra a hipocrisia a pensar que lhe vais ganhar, não vale a pena, porque perdes. O mundo perdeu valores, os melhores, e cimentou outros, os piores.
O José Mourinho é alvo de críticas violentas da Imprensa espanhola. As campanhas anti-Mourinho são mesmo consequência de uma rivalidade histórica espanhola contra os portugueses ou são os portugueses que têm a mania da perseguição? Não lhe perdoam um perfil de independência/competência?
Falta pouco para o final [ontem despediu-se do campeonato espanhol], e sempre foi meu princípio profissional fechar ciclos e abrir outros sem falar dos seus aspetos negativos. Vou tentar fazer isso e não falar da Imprensa espanhola.
Enquanto treinador de futebol, fica a ideia de que é estimulado pelo encontrar de alvos, causas, sempre na dicotomia amigo-inimigo. Está mesmo convicto de que é preciso focar um objetivo a abater para se chegar ao sucesso?
Não. Penso que o sucesso depende dos objetivos que um grupo, enquanto tal, é capaz de identificar, estabelecer e lutar por eles. Em grupo! E que é cada vez mais difícil, neste momento, um grupo funcionar como grupo. Os valores perdem-se, a educação pessoal e profissional é cada vez pior e mais influenciada por princípios morais que se vão perdendo. As escolas são diferentes, as famílias são diferentes, as crianças são diferentes e os grupos de trabalho são réplicas coletivas dos caracteres formados. Aqui está a nova dificuldade da sociedade atual e do futebol em particular: os grupos de trabalho.
É um ícone com a imagem associada ao sucesso. As derrotas são raras, mas quando sucedem, como reage? Com frustração, ou como pontos de partida de correção no planeamento de estratégias?
Vinte títulos em todos os países são muitos! Percebi que querendo ganhar mais vezes não posso deixar de ter maturado e entender que não ganhar faz parte da minha vida profissional. Por isso, a derrota hoje, para mim, está longe de ser um drama. E se sempre foi um ponto de partida para evoluir, agora muito mais.
Quais são os seus sonhos e objetivos para além do futebol? Tem fama, tem currículo invejável, tem dinheiro. O que o estimula fora do futebol?
Quero ser feliz. Simples.
Tem consciência de que fica na História do futebol? E esse é um motivo de gozo pessoal, ou sente-se cada vez mais responsabilizado?
Com a partida de pessoas como Alex Ferguson, percebo que, sendo ainda um treinador relativamente jovem, começo a ser um dos que estão no topo há mais tempo. E isso faz-me sentir outro tipo de responsabilidades. Penso ser um dos três treinadores com mais jogos na Champions; sou um dos que mais títulos têm; estou no topo há mais de dez anos.... Tenho de sentir responsabilidades. Os mais novos esperam isso de mim e não os posso desiludir. E não se trata de ganhar mais ou menos.
Sendo um personagem à escala planetária, o que o leva a continuar fiel à sua Setúbal e ao investimento em Portugal? Os laços familiares fortes são o único justificativo? Um cidadão do Mundo, como o José Mourinho, onde se vê a gozar a reforma, dentro de muitos anos?
Setúbal e Setúbal! A minha Setúbal, a minha casa, as minhas memórias, as minhas recordações. Foi em Setúbal que tudo começou. Tenho 50 anos, não consigo olhar para tão longe, apesar de saber que o tempo voa e tudo passa num abrir e fechar de olhos. Só quero ser feliz. Nada mais.