Portugal segue tendência europeia para assimilar atletas de outras nações graças a um regime de exceção que tem acelerado processos.
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O atletismo é a modalidade com mais atletas naturalizados nas diversas disciplinas, seguindo, aliás, uma tendência europeia. No último Europeu em pista coberta, na Turquia, oito dos 22 atletas da delegação lusa eram naturalizados. Da mesma forma, nos Jogos olímpicos de Tóquio 2020, Portugal apresentou a terceira maior delegação de sempre, com 92 atletas, 19 dos quais nascidos no estrangeiro, alguns até com formação desportiva em Portugal. Quando comparado com outras modalidades como o futebol, no último Mundial eram três (Pepe, Otávio e Matheus Nunes) os jogadores com outras origens, que beneficiam da nacionalidade portuguesa. No Mundial de andebol, Victor Iturriza e Alexis Borges, nascidos em Cuba, também entraram na convocatória lusa e no basquetebol há quatro naturalizados, sendo que aqui a federação limita a chamada a apenas um por convocatória.
Sem o recurso aos atletas naturalizados no atletismo, Portugal estaria mais afastado das medalhas, porque além de questões físicas e genéticas as bases de formação estão longe do nível daquilo que se vê em alguns países estrangeiros, que colocam o atletismo e as diversas especialidades ao nível das modalidades mais populares e assim atraem mais praticantes. Na Europa, por exemplo, há países em que as disciplinas escolares incluem o atletismo e as suas variantes, além de oferecerem infraestruturas de excelência.
Depois de Nelson Évora ter levantado a questão da naturalização de atletas, o JN foi à procura de saber de que forma decorrem os processos, concluindo haver duas vias. "No caso de Nelson Évora, chegou a Portugal com a família, proveniente da Costa do Marfim, tinha seis anos. Cresceu por cá, começou a praticar atletismo e aos 18 anos obteve a naturalização", explica, ao JN, Jorge Vieira, presidente da Federação Portuguesa de Atletismo (FPA), à imagem daquilo que sucede com outros filhos de imigrantes.
No caso do atletismo, a FPA permite que os jovens imigrantes possam competir nas provas nacionais até aos 18 anos, altura em que têm de optar por continuar a competir pelos seus países de origem, ou avançar para a naturalização: "Com Pedro Pichardo, o enquadramento foi diferente, porque estamos a falar de um atleta com currículo, que saiu da concentração cubana que se encontrava na Alemanha e fugiu para a Suécia".
A lei portuguesa, nos casos como o de Pedro Pichardo - atleta com currículo internacional -, prevê um regime de exceção, enquadramento que o cubano aproveitou para se naturalizar, dispensando o requisito de residência legal no território português, há pelo menos cinco anos, e conhecimento suficiente da língua. No artigo 6.º , n.º 6, da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, lê-se que "o Governo pode conceder a naturalização aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional".
Apesar do enquadramento, Pichardo foi proibido pela Federação Internacional de Atletismo de competir por Cuba durante três anos. Abordado por um empresário ligado ao Benfica, até porque os clubes têm cada vez mais interesse em contratar atletas estrangeiros, aceitou vir para Portugal e os encarnados desencadearam o processo de naturalização. "A FPA nada tem a ver com as naturalizações, quando muito, aquilo que faz é juntar uma carta de conforto ao processo, quando isso nos é pedido, porque não se envolve nisso", garante Jorge Vieira.
Há mais estrangeiros com processos em andamento
Portugal poderá chegar aos Jogos de Paris, em 2024, com um leque ainda maior de atletas naturalizados
A questão dos chamados "serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional", para nos cingirmos ao texto legal, levou a que Portugal pudesse contar com Arialis Gandulla (Cuba), Abdel Larrinaga (Cuba), Jéssica Inchude (Guiné-Bissau) e Rosalina Santos (África do Sul) no recente Europeu de pista coberta, que decorreu na Turquia, juntando-se a um leque de outros naturalizados liderados por Pedro Pichardo e Auriol Dongmo, entre os mais conceituados.
Mas na verdade há mais processos de naturalização em curso, que deverão permitir a, pelo menos, mais quatro atletas passar a poder envergar as cores de Portugal e competir a nível internacional a curto prazo. Os cubanos Reyner Mena (100 metros) e Roger Iribarne (110 metros barreiras) e os são-tomenses Omar Elkhatib (400 metros) e Agaté Sousa (salto em comprimento) são "reforços" aguardados por Benfica e Sporting, para elevar a fasquia nas competições nacionais.
Os dois clubes têm muita tradição no atletismo e após o nacional de clubes do ano passado envolveram-se numa troca de acusações por causa das naturalizações e da inscrição de atletas estrangeiros. No caso dos leões estavam em causa Andrii Protsenko e Roman Kokoshko, dois ucranianos, enquanto o Benfica era criticado por apostar no filão cubano composto por Reynier Mena e Roger Iribarne.
Para boa parte dos atletas que aguardam pela naturalização têm como objetivo os Jogos Olímpicos de Paris, de 2024. Até lá, os respetivos processos já deverão estar concluídos, faltando depois os atletas alcançarem os resultados mínimos de apuramento.
Ainda que a World Althetics (Federação Internacional de Atletismo) venha trabalhando no sentido de dificultar as mudanças de federação, que tem permitido a inúmeros atletas competir sob outras cores nacionais, a verdade é que o atletismo português tem vindo a "alimentar-se" desses "reforços" para ajudar a elevar a fasquia nacional e competir ao mesmo nível que outros países em disciplinas, até há alguns anos, com menos tradição em Portugal, como o triplo salto e os 100 metros. Antes, é bom não esquecer, Francis Obikwelu, nascido na Nigéria, foi medalha de prata em Atenas 2004. Foi aí que se abriu a caixa de Pandora.