A FIFA deu instruções claras aos árbitros para compensarem o tempo perdido nos jogos do Mundial. Conclusão: todas as partidas da primeira jornada tiveram descontos longos.
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A maior competição de seleções do planeta costuma ser palco de várias inovações e o Mundial 2022 não é exceção. Além do novíssimo sistema automático de deteção dos foras de jogo - que tem tido saldo positivo, apesar de algumas dúvidas, como no golo anulado à Argentina frente à Arábia Saudita -, a grande novidade tem tido dedo humano. A FIFA quer aumentar o tempo útil de jogo e, para isso, deu instruções claríssimas aos árbitros, que, agora, devem compensar com maior rigor as perdas de tempo. Cumprida a primeira jornada da fase de grupos, a diferença é clara: todos os 16 jogos disputados até agora, no Catar, tiveram em média 104 minutos.
A novidade surgiu pela voz de Pierluigi Collina, antigo juiz internacional italiano e atual presidente do Comité de Arbitragem da FIFA. "Temos de ter respeito pelos espectadores e telespectadores. Queremos evitar que os jogos tenham 42, 43, 44 minutos de tempo útil. Por isso, o tempo utilizado para efetuar substituições, marcação de grandes penalidades, festejos de golos, assistência médica e para recorrer ao VAR deve ser devidamente compensado", afirmou, ainda antes do início do torneio.
A grande alteração prende-se, aliás, com a compensação do tempo perdido no momento de festejar os golos, algo que não era tido em conta em Mundiais anteriores e que justifica parte da enorme diferença dos descontos em relação aos últimos quatro Campeonatos do Mundo: na Rússia 2018 já se notava um certo acréscimo, com os oito minutos extra a serem um salto em relação às provas anteriores, no Brasil, África do Sul e Alemanha.
"É preciso pensar da seguinte forma: se foram marcados três golos durante uma parte, provavelmente, perder-se-ão quatro ou cinco minutos nos festejos até que o jogo seja retomado", explicou, ainda, Collina.
As ordens para se ter mais atenção ao tempo perdido até já tinham sido dadas pela FIFA e pelo International Board no início desta temporada, mas o facto é que apenas no torneio que se realiza no Catar é que a mesma tem tido efeitos práticos e evidentes.
Nas 16 partidas que se jogaram nesta primeira jornada, nenhuma teve menos de dez minutos de compensação, no conjunto da primeira e segunda partes. E este mínimo só se verificou em cinco encontros, enquanto o recorde vai para os 29 minutos de tempo extra registados no Inglaterra-Irão, partida que, recorde-se, ficou marcada pela lesão do guarda-redes persa, Alireza Beiranvand. O segundo lugar do ranking de jogos mais longos vai para o Argentina-Arábia Saudita, duelo que também esteve muito tempo parado para se prestar assistência a um defesa saudita e que contou com várias intervenções do videoárbitro.
A verdade é que no Catar 2022 a média dos tempos de compensação já ascende aos 14 minutos por jogo - um enorme salto em relação aos Mundiais anteriores -, valor que deve, aliás, subir nas duas próximas jornadas, quando as seleções começaram a defender posições de apuramento para os oitavos de final. Resta saber se as lições deste Campeonato do Mundo vão ter reflexos. no futebol de clubes.
José Gomes e Manuel Machado, treinadores de futebol
1. Este aumento das compensações muda a forma de abordar o jogo?
José Gomes: Ainda não. É uma medida que tenta contrarirar o crime do tempo perdido, seja qual for a razão. A única mudança que admito, neste momento, é chegar aos últimos cinco minutos e saber que vamos contar com mais 10 ou 15: A eventual substituição ou a correção a fazer terá de ter isso em conta.
Manuel Machado: Não, não tem uma relação direta. Neste Mundial, a decisão, em termos aritméticos, acaba por compor, mas não resolve o problema globalmente. O que acontece é que estas compensações maiores podem criar mais ansiedade, sobretudo na equipa que está em vantagem e quer que o jogo acabe.
2. Acredita que o espetáculo e os adeptos saem beneficiados com estas decisões?
JG: Claro que sim. Vemos jogos com menos de 40 minutos de tempo útil, menos de 50% de tempo de jogo. É o mesmo pagar para ver um concerto e contar com 20 músicas e só ouvir oito.
MM: Sem qualquer dúvida, sobretudo para os adeptos neutros. Para quem está no banco, já não é bem assim: quando estamos a ganhar, cinco minutos extra parecem eternos, quando estamos a perder passam num instante.
3. Concorda com a possibilidade de o futebol ser jogado ao cronómetro?
JG: Sem dúvida nenhuma. Acho, aliás, que já estamos a viver um momento pré-cronometrista, como já acontece nas modalidades de pavilhão. A tendência é essa e vamos chegar lá, porque mesmo dando mais compensações, a decisão varia sempre de árbitro para árbitro e pode ser muito injusto.
MM: Dava mais verdade ao jogo, isso é um facto, como se vê noutras modalidades. Mas não me parece que essa mudança seja para já. Deixar de perder tempo é um processo educativo, que passa por jogadores, treinadores e árbitros. Este Mundial ajuda a educar, mas temos um caminho muito longo pela frente.
Paulo Pereira, ex-árbitro de futebol
O que lhe parece esta decisão da FIFA de aumentar os tempos de compensação?
Já no início da época, a FIFA e International Board tinham pedido às equipas de arbitragem para cronometrarem melhor as perdas de tempo. Isso até aconteceu nas instruções dadas pela Liga Portugal, mas nunca ninguém levou isso muito a sério. Em alguns campeonatos sim, mas na Champions ficou tudo na mesma. Agora, a FIFA quer dar o exemplo.
De um ponto de vista técnico, os tempos extra têm sido justificados?
Perante as instruções que foram dadas, são absolutamente justificados. O quarto árbitro tem uma instrução suplementar para controlar quando um atleta é assistido e quando há substituições. Isto vem mostrar que o jogo está, de facto, mais tempo parado do que pensávamos.
Julga que esta medida pode convencer jogadores e treinadores que não compensa perder tempo?
Esse é um ponto de vista um pouco otimista. Uma equipa inteligente, que esteja cansada, vai aproveitar todos os bocadinhos para tentar descansar. Não vai haver uma alteração imediata de paradigma, porque os atletas preferem recuperar fisicamente, mesmo correndo o risco de ver o jogo durar mais tempo para lá dos 90.
Há quem defende que este é o primeiro passo para que o futebol seja jogado ao cronómetro. Concorda?
Os puristas do futebol não gostam e eu, como sou purista, também não gosto. Esta matreirice faz parte do jogo, o gato e o rato, faz parte da beleza do futebol. Mas há muita gente a favor da cronometragem.
Mas facilitaria a tarefa dos árbitros...
Era um grande alívio para as equipas de arbitragem, claro, porque deixava de haver reclamações. Seriam 30+30 minutos de tempo útil de jogo, mas não me acredito que isso aconteça na próxima década.