Antigo jogador faz dois dérbis na carreira, um no José Alvalade em 1984 e outro na Luz em 1993, com golo a Ivkovic.
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A vida dá muitas voltas e há sempre Futre metido ao barulho. É dia 10 Maio, está a dar o dérbi de Milão para a Liga dos Campeões e Futre entra no edifício da TVI com a boa disposição do costume: "Ruizinho, meu querido, como estás?"
Mal, o Milan já está a perder 2-0.
Eischhhhh, já sei já sei. És Milan?
Claro. E tu também. Ou não?
Ahahahah.
Jogaste lá, foste campeão italiano e tudo. Até foste o primeiro português a jogar o dérbi.
Do que te foste lembrar.
Está aqui, ó [mostro-lhe uma foto do jogo, a contar para o campeonato italiano de juniores, o famoso Primavera]
Isso foi depois da minha terceira operação, estava a ganhar ritmo e o Capello meteu-me num jogo de juniores.
E que tal?
Para mim era um treino, cheguei ao balneário, equipei-me e entrei em campo. Não me lembro de mais nada.
Resultado?
Nada, Ruizinho.
Vou procurar na internet, nunca se sabe. Como foram os teus tempos em Milão?
Lindos, mágicos. Só fiz um jogo, o da festa de campeão, ganhámos 7-1 à Cremonese num San Siro à pinha. Saí para entrar o Roberto Baggio, agora vê. Entrei num balneário de monstros competitivos. Sabes uma coisa?
Conta.
Gostava de fazer treinos individuais depois do treino em si. No Atlético, por exemplo, puxava o López e fazíamos um para um à melhor de cinco. Eu a atacar e ele tinha de me tirar a bola antes que o fintasse.
O López era fixe?
Fixe? "López assassino" era o grito de guerra dos adeptos nos jogos fora do Calderón.
A sério?
Ruizinho, o López levava alfinetes nas meias para dentro do campo. Nos cantos, toma lá disto. Fora de campo, atenção, uma jóia de pessoa. Como era de Ceuta, perto de Marrocos, chamávamos-lhe cigano. No final de cada treino, chamava-o e competíamos à melhor de cinco.
Muito bem.
Queria chegar aqui ó: no Milan, o meu López era o Maldini.
Nããããão.
A sério, Paolo, grande enorme Paolo.
E ganhavas ao Paolo?
Ficava ela por ela.
Cof cof cof.
Ahahahah, a sério, ela por ela. Mas passá-lo era o cabo das tormentas. O Paolo era um fenómeno. Um senhor em tudo. No balneário, ele falava e todos se calavam a ouvi-lo, fosse Baresi, fosse Weah, fosse quem fosse. Paolo é Maldini e vice-versa. Que senhor. Ainda hoje o é.
Esse Milan também concentrava excêntricos, como Di Canio.
Mete excêntrico nisso, o Di Canio é um personagem. Outro igual é o Rossi. Mas, pronto, o Rossi é guarda-redes e os guarda-redes são mesmo assim. Têm de ser assim, aliás. Ou assim ou calmos como que indiferentes, sabes?
Explica.
O Mlynarczyk, por exemplo. Ficava no seu canto, só se ria e não se metia nas coboiadas. Ao intervalo, era o primeiro a entrar no balneário e ia logo para a casa de banho.
Então?
Fumar o seu cigarro. Ahhhh, o Jozef era assim. E sabes uma coisa, ligaram-me do Record, um tal Vítor Gonçalves, a dizer que faz hoje 40 anos da minha estreia pelo Sporting.
A sério? Espectáculo. Com quem?
Portuguesa dos Deportos, 2-0 por Oliveira e Jordão. Por curiosidade, lembro-me de tirar fotografias com eles no final do jogo. Ainda as tenho lá em casa. Que craques. E, ouve lá, esse jogo nem acabou direito.
Porquê?
Meteu caldeirada, os brasileiros passaram-se com o árbitro e houve confusão da grossa. Mas estava tão feliz que passei ao lado disso, só queria jogar no Sporting.
Vim cá hoje para falar do dérbi e ainda nem uma palavra.
Ahahahahah. Fala, Ruizinho.
Quantos Sporting-Benfica jogaste na formação?
Uyyyyy, dezenas entre campeonato distrital e campeonato nacional.
Já imaginava. E que tal?
Terríveis, a rivalidade era muito séria e eu adorava esses jogos, porque rebentava com eles. Como não havia marcação homem a homem, podia receber e voltar-me. Quando isso acontecia, embalava e até logo.
Quem era o lateral-direito do Benfica?
Eischhhhh, o nome está aqui mesmo debaixo da língua. Apanho-o num Farense-F. C. Porto já nos seniores, em 1984/85 ou 1985/86, vê lá aí nos arquivos.
Vou ver, vou ver.
Epá, o nome dele está mesmo aqui. Estou a vê-lo perfeitamente. Espera, já sei: Bio, chamava-se Bio.
Biooooo, claro. Vi um golo dele pelo Penafiel na minha estreia no Restelo, levado pelo meu avô.
A sério, o teu avô era do Belenenses? Lindo.
Sócio e tudo. Levou-me ao Restelo, ganhou 3-1 o Belenenses e depois fomos aos pastéis.
Claro, óbvio. Bio, era ele o lateral do Benfica. Já o conhecia de cor e salteado, ahahah. E o melhor do Benfica desse tempo, um craque mesmo, era o Samuel.
Como jogaste um ano no Sporting, só tens um dérbi com o Benfica.
Quando?
Janeiro 1984, no José Alvalade, entraste para o lugar do Lito aos 60 minutos.
E qual foi o resultado?
1-0 para o Benfica.
Pois, é por isso que não me lembro: quando perdia, esquecia.
Quase dez anos depois, jogas o segundo dérbi, agora pelo Benfica.
E na Luz, 1-0 com golo meu.
Deste já te lembras.
Ahahahah. Nessa noite, não joguei com o Sporting.
Então?
Joguei contra o Sousa Cintra. Tal como jogava sempre contra o John Toshack nos F. C. Porto-Sporting.
O que se passou com o Sousa Cintra?
Quando surge o momento de sair do Atlético Madrid, tanto Sporting como Benfica abordaram-me. Dei prioridade ao Sporting e cheguei mesmo a acordo. Só faltava o Sousa Cintra chegar a acordo com o Gil y Gil [presidente do Atlético] e íamos voar para Marbelha, onde estava o homem. Só que o Cintra não apareceu. Só há pouco tempo é que ele me disse que o banco, um banco qualquer, não me lembro qual, rompeu o acordo com o Cintra. Sem acordo, o Cintra não tinha dinheiro para fechar o negócio. Foi aí que reapareceu o Benfica e o negócio fez-se no próprio dia. Começa então a novela do Cintra a espingardar "o Futre isto", "o Futre aquilo". Daí te ter dito que joguei contra o Cintra, porque a culpa não foi minha, o negócio não se faz por culpa da falta de garantia de um banco.
Ainda me lembro bem da tua apresentação na Luz.
Dia de clássico com o F. C. Porto, para a Taça de Portugal, não foi? Não sei quantas pessoas na Luz, mas muitas, muitas mesmo, e eu entrei para receber aquele calor humano. Aliás, sempre convivi com pressão, seja F. C. Porto, seja Atlético. Quando chego à Portela, não sei quantas pessoas à minha espera no aeroporto. Quando chego à Luz, não sei quantas pessoas à minha espera no estádio. Quando chego ao primeiro treino, umas cinco mil pessoas. Aí disse para mim "é lá, isto é bom, isto é a minha onda".
O treinador era o Toni?
Grande Toni, campeão. As pessoas não sabem, mas ele dava dois berros e metia a malta na ordem. Vi-o fazer isso. Aliás, vi-o a impedir o Mostovoi de treinar.
Porquê?
Já não me lembro, mas os russos eram tramados. Complicados. E os três juntos faziam cá uma pandilha, não tinham medo de arranjar caldeirada.
E o Mostovoi?
Craque. Não o conhecia. Quando o vi com a bola no pé nesse primeiro treino do Benfica, calma lá: talento puro, génio. Viu-se depois no Celta, ainda é um ídolo em Vigo, ainda deve haver camisolas dele no estádio a ver os jogos. Já o Yuran era um poço de força e potência, enquanto o Kulkov era um trinco cinco estrelas, muito atento e voluntarioso, estilo cão de caça. Sabes uma coisa?
Nem ideia.
À hora das refeições do Benfica, os lugares das mesas já estavam distribuídos. O que sobrou para mim?
Diz, estou curioso.
Mostovoi, Yuran, Kulkov e Silvino. Fui o quinto elemento dessa mesa. E, atenção, os russos respeitavam o Silvino. Aliás, os russos respeitavam mais jogadores. Só que também não respeitavam uns quantos. Mas insisto, o Toni dava dois berros e aquilo entrava na ordem. É que ia direito a eles, tchau. E houve o tal dia em que impediu o Mostovoi de se treinar.
De volta ao tal golo ao Sporting na Luz.
Ah é verdade, desviámo-nos.
E bem.
Ahahah. Olha, por falar em desvio. Nesse dérbi, antes do golo e ainda na primeira parte, faço uma grande jogada em que ultrapasso o Ivkovic e, já sem ângulo, remato com efeito para ver a bola bater no segundo poste.
Alguma emoção na véspera por jogar o dérbi?
Sempre, desde miúdo. Por norma, tomava um comprimido para dormir. Em dérbis, clássicos ou Taça dos Campeões, dois comprimidos. Queria era dormir 12 horas seguidas. Saltava o pequeno-almoço e só aparecia para almoçar. Por falar nisso, vou é jantar. Importas-te, Ruizinho?
Nada, avança. Também vou à minha vida.
Abraço, grande abraço.