Portugal coleciona títulos e tem dos melhores e mais promissores jogadores de futebol, futsal e futebol de praia do Mundo. Que fenómeno é este?
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Há quem defenda que o talento está por toda a parte. Que há o talento que grita e que todos são capazes de perceber ou aquele que só sussurra e que apenas alguns conseguem discernir. Também há o que se mantém quieto e calado durante muito tempo, até que explode. Mais ou menos escondido, mais ou menos evidente, mais ou menos precoce, o talento está lá. A grande diferença, quase sempre, é o que se faz para o descobrir, potenciar, aproveitar e rentabilizar. Assim, uma conclusão importante surge logo à partida: pode ser que os fatores decisivos não estejam tanto nos praticantes e nesse potencial bruto, mas em tudo o que anda e gira à volta deles.
Não é por acaso que a Jamaica tem muitos dos atletas mais rápidos do Mundo ou que alguns dos melhores corredores de longas distâncias sejam quenianos ou etíopes, nem que os melhores basquetebolistas do planeta sejam americanos. Também não é por obra e graça do Espírito Santo que Portugal tem tanto talento com uma bola nos pés. Os jogadores portugueses são dos melhores no futebol, no futsal e no futebol de praia, modalidades que têm das seleções mais fortes a nível planetário e clubes a ganhar ou a lutar por troféus internacionais. Diz quem sabe, quem estuda e está por dentro do fenómeno que as razões são culturais, sociais, desportivas e até históricas. Por exemplo: "O 25 de abril trouxe uma grande mudança de paradigma. Antes o desporto era uma coisa quase de desordeiros, mas a partir daí cada um pôde virar-se mais para os seus interesses e o futebol cresceu muito", conta Duarte Araújo, investigador na área. E até uma certa aleatoriedade que se revela impulsionadora não deve ser ignorada. "O surgimento de um Cristiano Ronaldo não era muito provável num país como o nosso", defende o sociólogo João Nuno Coelho.
Está (quase) tudo nos livros
Das três, o futsal é o novo menino-bonito cá da pátria. Portugal é campeão do Mundo e há uma semana foi coroado bicampeão da Europa. Claro, isso também não caiu do céu. "Desde 2012, todos sabíamos qual era o caminho a percorrer", enfatiza, ao JN, Pedro Dias, diretor executivo da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) para a modalidade desde essa altura. Associações distritais, clubes, treinadores e jogadores, todos foram chamados a contribuir para a causa, a de colocar o futsal, masculino e feminino, no topo, e fazer parte de um processo pensado, supervisionado e facilitado pela FPF.
"O mais importante era e é que qualquer criança, menino ou menina, domine os princípios e os fundamentos da modalidade, porque tudo o resto pode ser potenciado. Foi nesse sentido que a equipa técnica da seleção elaborou três livros que foram publicados pela FPF e disponibilizados aos clubes, aos treinadores e às associações por ser uma forma de disseminar o conhecimento e ajudar os nossos treinadores a melhorar o processo de treino. Um livro é sobre as etapas de formação e desenvolvimento do jogador de futsal, ou seja, quais devem ser os conteúdos abordados na formação e nos diversos escalões etários; outro é sobre os princípios e fundamentos da modalidade e outro sobre a posição específica do guarda-redes. Essa obra foi um contributo decisivo", explica Pedro Dias.
O dirigente federativo valoriza ainda "o aumento e a melhoria das competições" à escala nacional como outro fator decisivo. "Parece que os jovens chegam aqui de repente e que ninguém os conhecia, mas não. O Zicky, o Afonso Jesus e o Tomás Paçó, que são os mais jovens, foram observados por nós com 13 ou 14 anos, passaram a integrar seleções distritais e depois deram o salto para as seleções nacionais. O André Coelho (Barcelona) foi identificado num torneio de seleções distritais, tal como o Fábio Cecílio e o Tiago Brito. É importante que o processo permita que jovens de qualquer região possam ser observados por nós porque não sabemos onde o talento está", acrescenta Pedro Dias.
Treinadores decisivos
Do que ninguém tem dúvidas é de que a melhor formação que contribuiu para a evolução dos treinadores e das metodologias de treino, transversal aos três "futebóis", está umbilicalmente ligada ao aparecimento de mais e melhores jogadores. Paulo Fernandes, um dos treinadores de futsal mais conceituados, campeão por Sporting e Benfica, recorda que quando chegou a Alvalade, "em 1992, só havia uma equipa de juniores e nem se trabalhava como deve ser". "Hoje, assiste-se a um jogo de juvenis e esses jogadores são mais fortes e melhores taticamente do que os seniores eram há 20 anos", salienta ao JN. Para o atual treinador do Viseu 2001, não restam dúvidas. "A qualidade e o talento são intrínsecos, sempre existiram, mas só a investir na formação de melhores treinadores é que se pode formar melhores jogadores", frisa, dando outro exemplo das mudanças drásticas que aconteceram: "Antes de 2000, quem quisesse ser treinador de futsal tinha que tirar um curso de futebol de 11 e depois tinha um bloco de umas horas na nossa modalidade. A FPF mudou isso e, como é lógico, isso prepara melhor os treinadores".
No futebol, mais do mesmo. "No meu tempo, o treinador da formação trabalhava e depois ia dar treino, dava os coletes, dividia 11 jogadores para cada lado e pronto. Não se ensinava, os jogadores aprendiam por eles mesmos", lembra Renato Paiva, atual treinador do Independiente del Valle depois de uma vida ligada à formação do Benfica. "Cada vez mais a formação dos jovens é levada a sério", vinca o atual treinador campeão do Equador, sublinhado, neste sentido, a importância de dar ao talento contextos favoráveis. "Claro que quando o produto em bruto é bom, tudo fica mais fácil. Mas cabe a mim, como treinador, ensinar o jogo e potenciar esse talento", explica. Ao JN, o investigador Duarte Araújo aponta "Mirandela da Costa, Monge da Silva, Jesualdo Ferreira, Nelo Vingada e Carlos Queiroz" como figuras fundamentais na evolução do treinador português, "a partir do início da década de 1980".
Uma questão de orgulho
Para João Nuno Coelho, "é um autêntico caso de estudo" como é que um país com 10 milhões de habitantes consegue ter tanto sucesso no futebol, no futsal e no futebol de praia. O sociólogo também enfatiza a preponderância da formação dos treinadores, mas junta à equação outras particularidades. "O futebol sempre foi das poucas coisas que agregava as pessoas em Portugal. Enquanto noutros países o orgulho nacional está mais dividido, aqui quase só está concentrado no futebol; há anos que os dez programas mais vistos na televisão são jogos de futebol! É uma paixão hegemónica, quase ditatorial, e não admira que haja uma predisposição enorme dos miúdos para jogar futebol", considera. Renato Paiva concorda: "Como eu, muita gente nasce com uma bola de futebol nas mãos".
Então, há algo que diferencie o jogador português? O treinador do Independiente del Valle é pronto na resposta. "Há, a formação. Agora que estou na América do Sul tenho essa perceção mais clara. Aqui, o talento é absurdo talento, a diferença é que em Portugal formam-se jogadores, aqui não".
Algumas razões para o sucesso
Melhores treinadores
A qualidade dos treinadores é vista como um dos maiores avanços que o futebol e futsal conheceram nas últimas décadas e determinante para melhorar a formação dos jogadores. Ajudar e potenciar a matéria-prima disponível é fundamental e só é possível através de pessoas capazes e formadas para isso.
Mais praticantes
Dados oficiais da FPF (ver página 4) mostram um aumento assinalável nos últimos dez anos do número de praticantes das três modalidades. Todas passaram a ter mais federados, o que se traduz em aspetos decisivos, como maiores redes de recrutamento e mais possibilidades de aparecerem mais bons jogadores.
Ídolos e referências
O surgimento de figuras como Eusébio, José Mourinho, Cristiano Ronaldo ou Ricardinho não se prepara nem se projeta, mas ajuda a cativar mais jovens para as modalidades. Ter exemplos de sucesso, referências mundiais, contribui para despertar o interesse e levar mais pessoas a apostarem nessas carreiras.
Melhores condições
No futebol, é inegável que o aparecimento das academias ajudou a formar jogadores mais preparados. Mas não é só ao nível das infraestruturas que se traduzem as melhores condições. No caso do futsal e do futebol feminino, a melhoria dos quadros competitivos é vista como fator decisivo para promover o crescimento.
Futebol feminino
Sim, elas também jogam mais e cada vez melhor
Começa a ser obrigatório tirar a cabeça da areia e calar o preconceito: o futebol, ou o futsal, não é só para homens. Não só há cada vez mais raparigas a praticar as modalidades, como também estão mais preparadas para fazer grandes coisas. Diga-se que o futebol feminino é outro grande exemplo de como investimento, alguma organização e melhorias estruturais podem resultar em impactos profundos e quase imediatos.
Antes de se tornar na primeira agente de jogadoras, Raquel Sampaio foi jogadora e ainda se lembra como "lavava os equipamentos e treinava a más horas". "Era muito amadorismo", desabafa. Por aí, até 2016, formação nem vê-la. O normal "era ver raparigas com 14 anos a jogar nas equipas seniores". Uma realidade que Mariana Cabral também não esquece. "Eu era jogadora em part-time na equipa campeã [1.º Dezembro] e o que tínhamos era dinheiro para a gasolina, sandes e sumos", conta.
Depois de ser jogadora, foi treinadora de formação e atualmente comanda a equipa principal do Sporting. "Hoje, as jogadoras têm, claramente, mais talento. Porque têm formação e condições que antes não existiam Mas vemos mudanças também pela quantidade (de acordo com a FPF, o número de praticantes quase duplicou nos últimos dez anos) e a quantidade é importante porque é sinal de que já não há problemas em que uma rapariga jogue futebol, mesmo com rapazes. Assim vão ter muitos mais anos de prática", explica Mariana Cabral, que já destaca diferenças consideráveis, entre elas "muito mais irreverência e aliar o físico à qualidade técnica".
"Agora, as jogadoras têm capacidades técnicas, físicas e emocionais que não tem comparação", junta Raquel Sampaio, que, embalada por um crescimento sem precedentes, aposta num futuro ainda mais risonho. "Um dia teremos uma portuguesa a ser a melhor do Mundo". Para já, há muitas promessas como Francisca Nazareth, atacante de 19 anos do Benfica.
Por falar em melhores do Mundo, Ana Catarina é uma das provas de que o futsal português também está muito bem representado no feminino. A guarda-redes do Benfica foi considerada recentemente a melhor do planeta, distinção que, aliás, repete, e ajuda a explicar o facto de a seleção liderar o "ranking" europeu. Com 21 anos, Fifó, que trocou o Benfica pelo Città di Falconara (Itália), emerge como o grande talento.
Ainda assim, o diretor-executivo da FPF para o futsal, Pedro Dias, assume que há trabalho a fazer, "nomeadamente aumentar o número de praticantes", que até estava a ser consistente antes da pandemia. Entre 25 e 27 de março, em Gondomar, Portugal tentará coroar toda a evolução e sagrar-se campeão da Europa pela primeira vez.
Vozes
Pedro Dias, Diretor-executivo da FPF
"Agora, antes de chegarem à seleção principal, os jovens jogadores já têm dezenas de internacionalizações"
Paulo Fernandes, Treinador de futsal
"O conhecimento que os jovens mostram hoje não tem comparação com há dez ou 20 anos"
Renato Paiva, Treinador de futebol
"Ao contrário do que acontecia, hoje já há treinadores de formação profissionais. E bem"
Duarte Araújo, Investigador
"O início da década de 1980 foi um ponto de viragem, ao começar a certificar-se a formação dos treinadores"
João Nuno Coelho, Sociólogo
"Os pais ensinam as cores aos filhos com as cores dos clubes. Portugal é um país futebolizado"