Flamengo vence rival Grémio por 5-0 no Maracanã e está, 38 anos depois, na final da Copa Libertadores. Crónica de um jogo excessivo no Rio que chegou a ser sobrenatural.
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A primeira parte começou aos 41 minutos. Até aí, como se diz aqui, a partida foi parelha e qualquer equipa podia estar a ganhar. Mas depois Bruno Henrique, o "speed wonder" de 28 anos que na época 2016-2017 fez 17 jogos no ataque do Wolfsburg e marcou zero golos, estourou o Maracanã e abriu o marcador. O Bruninho, que renasceu quando este ano chegou ao Flamengo e agora marca a cada dois jogos (nos intervalos dele marca Gabriel Barbosa, o Gabigol, que tem uma média melhor: é 1 para 1), desculpou-se assim da sua época na Alemanha: "O problema era o frio, não era eu". E depois de dizer isto, BH sorriu na sua cara de maroto mulato e esticou um sorriso perenal que durou até aterrar no presente.
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O jogo acabou logo aos 30 segundos da segunda parte quando Gabigol pipocou o estádio todo e fez o 2 a zero. A partir daí, com o Grémio todo estraçalhado, o povo a gritar olés, os golos sucederam-se a cada dez minutos, que é o tempo médio em que os espectadores médios aguentam sem adormecer nos intervalos de estrondo dos filmes de ação. Aos 56": Gabigol, agora de pénalti que nem precisou de VAR, marca outra vez (os adeptos do Benfica viram a cara como ao vinagre de cada vez que se fala em Gabigol: em 2017, o brasileiro esteve na Luz e em toda a época marcou um golo só). Aos 67": marca Pablo Marí, um zagueiro que parece a osmose do irmão do meio de Bruno Fernandes e Rui Patrício, mas que é mais bonito e espanhol. E aos 71" marca Rodrigo Caio Coquette Russo, outro zagueiro, este é italo-brasileiro, e é um tipo de jogador a quem também se chama beque ou então para simplificar chama-se-lhe só defesa-central.
E muitas coisas estranhas a acontecer
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Foi a partir do 3-0 que várias coisas sobrenaturais começaram a acontecer no Maracanã. Mal Gabigol marcou esse penálti perfumado, estava o jogo já no papo do Flamengo, e o que faz Jorge Jesus? Afivela a sua pose de cara longa, uma cara capaz de cauterizar só com o olhar, e põe imediatamente sete jogadores a aquecer. O público responde com bruaá, numa balbúrdia de 69981 pessoas estrídulas a rir, o que incluiu os 10% de atónitos adeptos do Grémio Foot-Ball Porto Alegrense que vieram ao Maracanã e viam os seus jogadores a correr como galinhas acabadinhas de degolar. Não se enganou a torcida: nas três substituições que fez a seguir, Jesus não foi em retrancas e meteu dois médios de ataque e ainda um atacante. E é por isso que a torcida do Mengão venera Jesus, porque Jesus quando cozinha mete a carne sempre toda a estalar no assador.
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A partir daí continuam as coisas estranhas a acontecer. O estádio começa a respirar sozinho como um organismo vivo e ressuda; é o próprio betão que está a transpirar e o chão e as paredes escorregam em todas as direções, sobretudo para quem entra e sai do bar. Arregalem-se, operistas portugueses: no Brasil, os estádios vendem álcool e não há limite, nem depois de rebentar - e por isso aqui, os golos parecem líquidos, tantos são os copos que deflagram nos festejos pelo ar.
Mais coisas de estranhar: aos 4-0, os adeptos rubro-negros começam a sorrir de uma forma que parece impossível de contar, sorriem a 360 graus, é como se as suas bocas e os seus sorriso se abrissem a toda a volta da cabeça, como se tivessem dentes até à nuca, em sorrisos totais, tal era a sua satisfação.
E mais ainda: também o gramado estava com pele de galinha, todo arrepiado, porque ainda não tinha visto nada assim, 5-0, cinco secos sem perdão, coisa inédita desde que Jorge Jesus aqui chegou como o redentor que abriu os braços de outra nação.
O som da araponga ou da água a ferver
Mas outra coisa exótica, pelo menos para um ponderado espectador português, porque o português, é o que anda a dizer por aqui Jesus, quando vai ao estádio em Portugal comporta-se como se comporta na ópera, isto é, cala-se e não bufa, outra coisa exótica esteve sempre a pairar no ar.
Era como se todos os adeptos do Flamengo fossem subitamente todas as arapongas da Amazónia, que são como se sabe cientificamente as aves mais barulhentas que há no mundo. Estas aves, que parecem pombas brancas de lábios pretos, gorjeiam como ninguém, são como a trompa prolongada da buzina metida num bico de megafone.
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É um tom altíssimo, astronómico, mais alto que o da britadeira, um som que estremece tudo à volta nos seus 125 decibéis de trinado contínuo, triplicando o limite saudável para o ouvido humano, conseguindo esses pássaros ser ouvidos a mais de 1,5 quilómetros na floresta.
Com os adeptos a vozear todos ao mesmo tempo dentro da arena oval, às vezes esse som também se parecia com milhares de panelas de água a ferver, num gargantear que era ainda amplificado com batucadas permanentes a chicotear o ar. Ir ao Maracanã não é definitivamente ir à ópera, nem que a ópera seja bufa, isto é, cómica, o que por acaso esta acabou por ser.
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Para quem não é experimentado na torcida do Flamengo, a vozearia da urubuzada (o símbolo do Clube de Regatas do Flamengo é isso, é um urubu, e de olhar afiado sob grandes asas negras destampadas), os cânticos da torcida surgem tão amplificados atirados ao ar que vão para lá de Jacarepaguá e da distorção. Isto é o mais próximo da grafia que se consegue apanhar: às vezes eles gritam crescentes "ôô, ôôô, ôôôô, ôôôôô ôôôôôô Mengo!" na incitação; outras vezes cantarolam singelos e contentes a rimar "lá lalaialaiá lalaialaiá lalaiá raça!"; outras ainda, quando estão na simples superação, dizem só "dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe ôôôôôôôô!"; e também recorrem ao canto praticamente clássico "lê lêlê lêlê lêlê, bota pra fuderr!". Em qualquer caso, é sempre um trovejo, uma empolgação.
A pimenta foi refresco para o Mengão
Pimenta no olho do outro é refresco: esta é pior goleada do Grémio na história de 19 participações na Copa dos Libertadores, uma competição continental que envolve 44 equipas de 10 países da América do Sul e que é como a Liga dos Campeões da Europa. Pior - ou por outro lado, melhor, porque o ponto de vista é carioca -, é a maior derrota em 324 jogos oficiais de Renato Portaluppi, o Renato gaúcho, o "cocky" treinador gremista que estrinchou com o nome de Jesus quando o treinador português aqui chegou ao Rio, colocando em causa o seu palmarés, dizendo que o seu Grémio é que tinha o futebol mais bonito do Brasileirão, prenunciando com ar de fanfarrão que ninguém é treinador revelação quando já tem 65 anos. Saiu-lhe o tiro pela culatra, isto é, saiu-lhe por trás.
Admitindo na conferência de imprensa posterior, de onde entrou e saiu todo amochado, o pequeno Portaluppi teve que admitir, engolido, que o Flamengo de Jesus tinha sido muito superior - mas depois, como que a querer menorizar a glória épica do português, disse que a sua equipa jogou tão mal que "neste jogo até mulher grávida marcaria gol ao Grémio".
Jesus anda como uma pantera de pantufas
Numa arena com 69981 pessoas, a lotação do jogo de ontem, que olham todas para um retângulo de alta definição onde 22 jogadores discorrem em geometrias avançadas, ver o andamento do treinador Jorge Jesus é todo um espetáculo à parte.
Vestido de fato preto, camisa branca, sapatilhas pretas de sola nevada, tem a pinta impecável de um "Reservoir Dog" em dia de folga, isto é, sem gravata e sem pistola, a sua longa melena revestida de folhas de prata - como se tivesse o seu próprio vento particular -, Jesus esteve sempre sempre de pé durante os 90 minutos da batalha.
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A palmilhar incessantemente o pequeno paralelogramo que está reservado à frente do banco de suplentes da sua equipa, rente à linha lateral do campo de jogo, ele tem basicamente duas posturas: ou está fixado no mesmo sítio com os braços cruzados muito apertados, como se se abraçasse a si próprio, e aí só os seus olhos se movem, a esquadrinhar tudo da peleja com o olhar do gavião; ou está a gesticular tresloucadamente para dentro do campo, aos berros, extremamente enfuriado, as mãos cheias a atirar exclamações. Quando está nesta última postura, os seus braços assumem movimentos peculiares: o esquerdo é aberto e distendido, palma da mão virada para baixo, e move-o como se batesse uma bola de basquete imaginária; simultaneamente, lança o braço direito ao ar, todo para à frente, a chamar, mas a chamar como quem ameaça a sério, dentes cerrados para atemorizar o distante jogador interlocutor. Frequentemente, termina esta postura a arremessar os dois braços repentinos em direção ao chão, rodopia e põe-se a andar. Com muita frequência também, ele ultrapassa os limites da linha que lhe está reservada e parece que vai entrar em campo. Em todos os casos, parece sempre uma pantera incapaz de se saciar - mas uma pantera suave, de veludo, como se a pantera andasse na fofura núvea das pantufas.
Temos mais saudades de Jesus do que ele de nós?
A todos os cinco golos da noite heróica que passou, Jesus reagiu da mesma forma: assim que viu que a bola entrou, ou melhor, que o árbitro a validou, virou as costas à celebração, fixou o olhar no chão, e caminhou a mexer lentamente no cabelo da frente para trás, numa comovente humildade, como se nada daquilo fosse seu.
E é tudo: além de ter colocado o clube na final da Libertadores 38 anos depois de o Flamengo a ter vencido uma única vez (1981, o Deus era outro, eram um 10, era Zico), com jogo agora marcado para 23 de novembro, em Santiago, no Chile, contra o outro finalista, o River Plate, da Argentina, o puro mister português mantém o Fla em primeiro lugar no Brasileirão e a 10 pontos de distância do segundo, que é agora o Palmeiras, quando faltam só 11 jornadas para o campeonato terminar. O próximo embate é já domingo, às 19 horas (23 horas em Portugal), contra o Centro Sportivo Alagoano, que está no 18.º lugar, na linha aflita da despromoção.
Os 40 milhões de adeptos do Flamengo - um em cada cinco brasileiros sofre pelo Mengão, atesta o instituto da Datafolha - adoram-no, querem fazer-lhe uma estátua, dar-lhe contrato vitalício, estão prontos para o divinizar como o novo Redentor. É arrepiante ouvi-los cantar ao vivo e em coro no pulmão do Maracanã o refrão que estão sempre a atear, como quem lhe atira flores constantes, constantemente inflamadas, "Olé, olé, mister, mister".
Na conferência de imprensa final, onde pareceu emocionalmente exausto e de onde saiu sob aplausos dos jornalistas, Jorge Jesus tornou a não confessar as saudades que terá de Portugal. Quando lhe perguntaram se estava emocionado com tudo o que lhe está a acontecer desde que há quatro meses chegou ao Brasil, Jesus terá fabulado, e só disse: "Eu não estou emocionado, eu estou é rouco", disse a querer gracejar como os duros, ou melhor, a querer mudar a conversa, porque a voz saiu-lhe toda embargada, a sumir-se pelo coração. A forma com o disse, ou a forma como nos olhou ao dizê-la, foi como se ele não se permitisse, como Clint Eastwood também não se permite, que o vejamos alguma vez chorar.