João Vieira ganhou a medalha de prata nos 50 quilómetros marcha e paga as sapatilhas do próprio bolso
Corpo do artigo
Seis litros de água, quatro sacos de gelo na cabeça, um lenço gelado no pescoço, e uma estratégia certeira permitiram a João Vieira ganhar uma medalha de prata para Portugal nos Mundiais de atletismo, na prova de 50 km marcha, no Qatar. Na cidade de Rio Maior, que o viu crescer, o sol tem outro brilho nestes dias. Os amigos dão-lhe na rua os parabéns e na pista, onde costuma treinar, os jovens atletas e treinadores recebem-no com sorrisos. Discreto por natureza, agradece timidamente porque, às vezes, parece não ter ainda digerido o feito gigantesco que alcançou: aos 43 anos, tornou-se no atleta mais velho da história a conquistar uma medalha em mundiais de atletismo. Proeza conseguida sem apoios, sublinhe-se, de um único patrocínio. "Não esperava consegui-lo... Quisemos fazer uma prova inteligente, devagar na primeira parte da corrida e mais rápida na segunda. Só a partir dos 38 quilómetros é que comecei a acreditar numa medalha". Terminou com o tempo de 4.04.59 horas, atrás do vencedor, o japonês Yusuke Suzuki.
Para combater o extremo calor de Doha, o português recorreu a métodos pouco ortodoxos. De dois em dois quilómetros, colocou quatro sacos de gelo na cabeça, além de um lenço gelado no pescoço, para o seu corpo manter a temperatura ideal, e bebeu seis litros de água durante as quatro horas da epopeia. Os desafios não ficaram por aqui. Como a prova se realizou à noite (entre as 23.30h e as 3.30 horas), treinou sempre em horário noturno nas semanas anteriores. "No início, o corpo estava adormecido, em modo de descanso, e os treinos não rendiam nada. Estou habituado a deitar-me às 22 horas e tive de mudar. A adaptação demorou um pouco". A preparação incluiu outro detalhe muito importante, que foi explicado pela treinadora e namorada, Vera Santos. "Ele treinou no centro aeronáutico de Coimbra, numa sala que foi construída para os bombeiros testarem condições extremas e que depois foi adaptada ao desporto. É uma sala toda estanque, em que foi simulada a temperatura e a humidade de Doha, e aí fez 15 treinos".
Atleta do Sporting, sagrou-se vice-campeão do Mundo apesar dos escassos meios que tem à disposição. "Tenho apoio financeiro do clube e do Comité Olímpico. Dá para sobreviver. Apenas isso". Tem de comprar as sapatilhas. "Cada par custa 150 euros e duram 500 quilómetros. Como faço cerca de 800 quilómetros de treino por mês... Num mês posso comprar até quatro pares". Ao contrário do futebol, os campeões das restantes modalidades vivem com dificuldades. "Quando não tenho bolsas, sou obrigado a pagar tudo do meu bolso. São necessárias muitas poupanças".
"Fomos criticados, os anos passaram e ainda estamos juntos"
Vera Santos, a treinadora de João Vieira, é também a namorada. O relacionamento começou quando tinha apenas 15 anos. "Na altura, por ser ainda uma menina e ele já ter 19 anos, fomos criticados, mas é verdade é que os anos passaram e ainda continuamos juntos", brincou.
Em casa, garantem que sabem separar o trigo do joio. O relacionamento é uma coisa, a profissão outra. "É muito fácil fazer essa divisão, não nos chateamos nem eu abuso das ordens por serem da Vera", afirmou João. A antiga corredora olímpica, de 37 anos, que também é treinada pelo corredor, concordou e escolheu uma qualidade e um defeito sobre o namorado. "A pior característica é a teimosia, a melhor é o rigor".
Têm uma filha, Sofia, de 17 meses, que os acompanha para quase todo o lado, incluindo estágios. Não foi, porém, para o Qatar, prova que exigiu concentração máxima de ambos. "Durante o dia da competição, disse ao João que ia fazer o seu pior tempo de sempre, devido à nossa estratégia, mas se calhar não seria o pior resultado. Com o decorrer da prova, subiu lugares e, é claro, eu fui ficando satisfeita". Como técnica, esteve no local de abastecimento e o coração quase explodiu na reta final. "No último quilómetro, quase corri ao lado dele, da parte de fora da estrada, e foi uma alegria que não tem explicação".
Feitas as contas, o esforço compensou. "Foi muito importante termos visto na véspera a maratona. Metade dos atletas perderam a força na segunda metade da corrida e a nossa estratégia foi decidida com base nisso. Só 24 horas antes". Foi assim que João Vieira se sagrou vice-campeão do Mundo na marcha.
Uma noite inteira a vibrar pelo vitória do irmão gémeo
Sérgio Vieira é outro dos pilares de João. Começaram a correr juntos em Rio Maior, depois de verem Carlos Lopes ganhar a maratona olímpica de Los Angeles, em 1984, quando ambos tinham oito anos. Foram juntos a muitas provas, como foi exemplo os Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim. Por já ter família, Sérgio acabou mais cedo a carreira. "Se tens um ano mau no atletismo, não ganhas nada e há contas para pagar", lamentou. Não esteve no Qatar, mas seguiu, madrugada dentro, a prova do irmão. "Acompanhei através do site da IAAF e foi uma noite inteira a vibrar", enalteceu, feliz.