Obra de divulgação de terapeuta sexual ilumina os recônditos da vida conjugal numa linguagem acessível e casos reais.
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Creio que está a exigir-se demasiado, em termos sexuais. Já não basta, como antigamente, um sexo mais ou menos rápido e rotineiro, procriativamente eficaz, para o que era suficiente o orgasmo masculino, o único necessário, mesmo que precocemente experimentado e apetece-me especular que talvez este até caísse "como sopa no mel" das mulheres apenas receptivas, disponíveis para os deveres e não para os prazeres conjugais, porventura uma modernice cultural dos últimos séculos, ou mesmo décadas, da história da humanidade… As mulheres, agora economicamente independentes, trabalhando fora de casa e, por isso, interagindo muito mais socialmente, tomaram consciência do seu corpo, pretendem tirar dele prazer e exigem dos homens a ajuda para o conseguir, sentem-se no direito de serem amadas também fisicamente e assumem a gratificação sexual como necessidade e direito básicos. Corresponsabilizando, assim, os parceiros e condicionando-lhes a angústia de não serem competentes. Os ejaculadores prematuros perderam a aura de supermachos e passaram à triste condição de deficientes sexuais.
Às mulheres (basta ver as capas das revistas) também já não se pede apenas que interajam sexualmente com os companheiros, espera-se que tenham orgasmos (de preferência múltiplos e de uma imensa variedade de formas, embalados por gemidos e outras sinalécticas que não deixem aos homens quaisquer dúvidas de que são as maiores máquinas sexuais do universo…); o mero envolvimento sexual está longe de bastar. Uma boa amante, em versão moderna e actualizada, deve, além do mais, satisfazer o companheiro e as suas fantasias, invertendo a asserção soixante-huitard de que não há mulheres frígidas, apenas homens incompetentes. Por isso, cada vez mais encontramos mulheres disfuncionais por sofrerem de ansiedade de desempenho, já que receiam não estar à altura do companheiro, algo que, há três ou quatro décadas, era apenas um triste privilégio dos homens…
À sexualidade exige-se, hoje em dia, maior sofisticação, espalhou-se, desgraçadamente, a ideia de que se ela não é muito boa, se não conduz ao Nirvana, é disfuncional. Aumentaram, concomitantemente, os factores que a podem perturbar, entre os quais os que a vivência conjugal também condiciona. O casamento tende, naturalmente, a entrar na rotina, vão desaparecendo os arroubos e os entusiasmos iniciais, as condições vivenciais são, frequentemente, difíceis, ou, mesmo, penosas. Como é possível compaginar isto com este novo sexo, que exige uma grande disponibilidade psicológica, de tempo e de investimento na relação? Como é que isto se pode articular com a realidade das vidas das pessoas, da grandíssima maioria delas?
Ao fim de um dia de trabalho duro (acordar os filhos, lavá-los, preparar-lhes o pequeno-almoço, vesti-los, ir trabalhar, frequentemente em condições pouco menos que desumanas, regressar a casa, fazer o jantar, lavar novamente os filhos, metê-los na cama...) o que apetece a esta mulher, quando, à noite, se deita? Dormir, obviamente dormir e não fazer amor, muito menos este, exigente, impossível. Menos mal se fosse o sexo rápido com um ejaculador prematuro, digo eu… E, porque não funciona segundo os modernos cânones da ciência sexual, lá aparece, directamente esgrimido ou apenas sugerido, o libelo marital de que ela não é como as outras, que é fraquinha para essas coisas, que talvez fosse bom pensar em ir ao médico, para trazer de lá umas pílulas (dizem que também já há disso para as mulheres) que a transformem numa loba na cama. Mas não muito voraz, que à mulher casada ainda se exige certo decoro…
Não há médicos que resolvam isto, nem a ferida brutal na auto-estima que este discurso provoca e transforma uma mulher normal - frequentemente uma heroína - em alguém disfuncional e imprestável. Na existência destas mulheres há, evidentemente, uma disfunção, mas não é sexual - é uma disfunção da vida. E não será nada bonito que atiremos pedras ao marido (excelente criatura, honesto, trabalhador, que não lhe falta com nada, simples como são quase sempre as boas almas…) por a acusar de não cumprir com brio e galhardia as obrigações conjugais. Tenhamos antes a bondade de perceber que "é apenas um homem, coitado"…
É, muitas vezes, grande a desproporção quanto às necessidades sexuais dos dois membros do casal e, quase sempre, com o homem a ter mais interesse em fazer amor - ou sexo, sejamos justos, já que nem sempre os conceitos são sinónimos - do que a mulher. O padrão habitual, denominado duplo padrão faz com que, tendencialmente, na interacção entre os sexos, o homem privilegie a sexualidade e a mulher os afectos. Os homens valorizam sobretudo os aspectos físicos da relação, em detrimento dos afectivos. Por isso a genitalidade é muito mais procurada e é, para eles, um dos mais importantes indicadores de gratificação relacional ou conjugal.
Este contexto cultural em que as mulheres valorizam mais os afectos e os homens a posse e o prazer físico, é responsável por algumas discrepâncias existentes, nas relações conjugais, quanto à importância da sexualidade. Na grande maioria das vezes as dificuldades sexuais da mulher têm a ver com perturbações da comunicação conjugal a outros níveis, sendo reactivas à tensão e hostilidade da relação, ou, mais simplesmente, ao seu empobrecimento. É portanto, uma forma de protestar através do corpo, compreensível à luz da psicofisiologia da sexualidade feminina. Também, por norma, as mulheres têm uma vida bem mais complicada que a dos homens e nomeadamente, se ganharam o direito de trabalhar fora de casa, continuam, no lar, a fazer as mesmas coisas que faziam antes desta "conquista", apenas com muito mais pressão e um esforço bem maior.
Por isso, continuam a ser socialmente punidas, mesmo no nosso tempo e na nossa cultura, pelo simples facto de serem mulheres. Desgastam-se mais, cumprem uma labuta tendencialmente mais intensa e, nessas circunstâncias, chegam esgotadas ao fim do dia, naturalmente indisponíveis para a sexualidade (que, então, constitui uma violência adicional) por muito que isso possa desagradar aos homens. Afinal, se não mudar o estilo de vida destas mulheres (e pelo menos uma parte dessa mudança passa por maior apoio e solidariedade dos companheiros, é bom que eles não fiquem a assobiar para o lado…) não há milagres, não vale a pena procurar sexólogos, por muito reputados que eles sejam.
Título: "Até que a sorte nos separe"
Autor: António Santos Pereira
Editora: Ambar
Prefácio: Júlio Machado Vaz