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Em 1867, o Código Administrativo da autoria de Mártens Ferrão, na sequência do qual foram extintos 104 concelhos, provocou uma grande onda de contestação. Não só devido à desclassificação dessas divisões administrativas, mas também pelo reforço da centralização da Administração Pública. O descontentamento era de tal ordem que, no dia 1 de Janeiro do ano seguinte, teve início, no Porto, uma revolta popular, commumente conhecida por "Janeirinha", que acabou por se estender a outros locais do país. Resultado: o Governo caíu e a lei não vingou.
Este episódio da História de Portugal é invocado por Carlos Abreu Amorim, professor na Escola de Direito da Universidade do Minho e investigador do Centro de Estudos Jurídicos do Minho, para mostrar quão sensível são as questões relacionadas com a organização administrativa. "As freguesias e os municípios estão enraizados nas populações", sublinha. Contudo, esclarece, apesar de haver rivalidades históricas e esse sentimento de pertença das população ao território, é necessário levar a cabo algumas reformas. "Devidamente sustentadas e explicadas às pessoas. Somos, indubitavelmente, o país do primeiro mundo que tem a Administração Pública mais centralizada e mais cara", refere. O lugar era, até agora, ocupado pela Grécia, que, a partir de Janeiro, irá ter regiões administrativas.
Este parece, contudo, ser o calcanhar de Aquiles do Governo. Em Janeiro, o primeiro-ministro garantiu que seria feito um novo referendo sobre a regionalização nesta legislatura, mas o secretário de Estado da Administração Local, em declarações ao jornal Público, assumiu que, para já, a reforma será sobretudo ao nível das freguesias, podendo passar pela criação de associações de freguesias.
Mas António Montalvo, director do CEDREL (Centro de Estudos para o Desenvolvimento Regional e Local) e perito do Conselho da Europa em matéria de Direito da Administração Local e gestão pública, defende que, "enquanto se verificar o desinteresse do Estado Central em relação à descapitalização e despovoamento, a regionalização poder ser uma saída para o subdesenvolvimento do interior do país, que década após década revela despovoamento, envelhecimento e perda de oportunidades de emprego".
Lembrando que a regionalização está consagrada constitucionalmente, António Montalvo sublinha que "deve ser objecto de um novo referendo" e denuncia a ideia, por parte da Administração Central, de que "tudo o que não é controlado pelo Estado é mal controlado".
Mas Paulo Trigo Pereira, professor associado do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão) que integrou a comissão de avaliação do PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado), considera que "é prematuro avançar para as regiões administrativas". Sobretudo porque o modelo de regionalização existente, o das regiões autónomas, "não está a funcionar bem, especialmente em termos financeiros". E exemplifica com a recente polémica em torno da decisão do Governo Regional em atribuir um complemento de remuneração aos funcionários públicos regionais.
Este especialista em finanças locais considera que "a distribuição das receitas dos principais impostos deve estar constitucionalizada e não em lei ordinária". Paulo Pereira Trigo afirma que "o principal problema se prende com os critérios de atribuição de verbas às freguesias, que privilegiam as que têm menos população". Como mero exercício de ilustração, refere os casos das freguesias de São Bento de Ana Loura (município de Estremoz) e do Cacém (município de Sintra). A primeira tem 46 habitantes (é a freguesia menos populosa do país) e a segunda, 22.271, mas São Bento de Ana Loura vai receber mais do Orçamento do Estado para 2011 por cada habitante.
A conta é fácil de fazer: São Bento de Sana Loura irá receber 21116 euros, ou seja, 459 euros por cada habitante; ao Cacém serão atribuídos 116 mil euros, o que se traduz em 5,2 euros por cada habitante. Dos 308 municípios existentes, 110 tem menos de 10 mil habitantes, sendo que as zonas mais despovoadas se encontram, na sua maioria, no interior do país. Por outro lado, existem 4260 freguesias, ou seja, uma por cada 2497 habitantes.
Diogo Mateus, presidente da Associação Profissional dos Urbanistas Portugueses, defende também a necessidade de "repensar o território", considerando que na base desta não devem estar apenas questões de ordem cultural ou económica. "O que se pretende é uma reconfiguração territorial para aproveitar recursos e sinergias", sublinha, acrescentando que "é importante e estudar o território e não trabalhar apenas a partir de Lisboa e consciencializar as populações de que não perdem as suas identidades locais e culturais".
Nova Lei Autárquica
Diogo Mateus refere ainda que "os concelhos não podem ser pensados como ilhas", como o são até agora. "Se olharmos para o mapa dos Planos Directores Municipais, verificamos que para lá das fronteiras dos territórios não há nada, como se os municípios existissem isoladamente".
Carlos Abreu Amorim destaca ainda dois pontos em que Portugal é exemplo único no Mundo: o facto de o órgão deliberativo (Assembleia Municipal) não poder dissolver o órgão executivo e a existência de vereadores da Oposição no Executivo autárquico, muitas vezes com pelouros atribuídos. "Não há nada pior para a transparência do que esta situações", sublinhou o mesmo professor universitário, criticando: "Os partidos, nomeadamente o PS e o PSD, adaptaram-se aos defeitos do sistema".
Em sua opinião, a Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, que o Governo quer rever com urgência, deveria contemplar um novo método de eleição dos titulares dos diversos cargos, baseado no da Lei Eleitoral da Assembleia da República. "Os eleitores deveriam eleger os membros das Assembleias Municipais. Os deputados municipais deveriam escolher o presidente da autarquia e este, os seus vereadores", defende.