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Uma tatuadora que quer aprender a fazer molho béchamel, um mestre cervejeiro encantado com os segredos atrás do balcão e uma administrativa que sonha em ser uma estrela Michelin. Os motivos são diversos, mas o objetivo é idêntico: a integração profissional, através de um setor que está a crescer e que precisa de recursos humanos. Até ao final do ano, haverá 1300 imigrantes a trabalhar em hotéis e restaurantes de todo o país e ilhas, graças à formação que está a ser dada pelo Turismo de Portugal.
Com os ingredientes alinhados na bancada, Andressa Oliveira assume as rédeas do pequeno grupo. É a primeira aula de Pastelaria e a tarefa é preparar sobremesas como mousse de chocolate ou leite creme. Há pouco mais de dois anos, a brasileira de 36 anos, formada em Administração, “largou tudo” no Rio de Janeiro para acompanhar o marido, filho de vianenses, na nova vida em Portugal. “É como se tivesse que aprender a andar novamente”, compara a carioca, admitindo que no início sentiu alguma resistência à mudança e até dificuldades no idioma.
Por ser amante de cozinha, inscreveu-se na formação de 360 horas e integra o grupo de 40 imigrantes que, desde meados de março, tem aulas na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto. “É desafiante porque nunca trabalhei na área, mas a gente tem que se reinventar, encarar a oportunidade com garra”, declara Andressa, que lança a ambição para a frente.
“Quem sabe não viro uma estrela Michelin. É sonhar demais, mas quem somos nós sem sonhos? Temos que sonhar, o sonho motiva-nos”, defende. Enquanto a brasileira bate as claras em castelo para a mousse de chocolate, a colega Meivis Maocuane revisita a preparação das receitas, escritas no grande quadro branco da cozinha de trabalho.
Mudar de país para fugir à guerra
Desde que chegou a Portugal, há oito meses, a moçambicana de 23 anos já provou leite creme, mas nunca comeu arroz doce, outra das sobremesas que terá de confecionar. Mudou de continente devido à tensão política do país e para estudar, mas o curso de cozinha tornou-se uma alternativa à advocacia. “As comidas daqui são muito diferentes. Estou aqui por gostar mesmo de cozinha e quero aprender a fazer”, justifica.
Numa cozinha multicultural, onde o burburinho dos formandos se mistura com o som dos tachos e panelas, a língua portuguesa é transversal. Apesar de ainda não conseguir manter um diálogo fluente, a ucraniana Olena Kravets, 31 anos, entende a maioria das indicações de Pedro Dias, um dos dois formadores que acompanha o processo de confeção de cada grupo. Com cuidado, a tatuadora dispõe a massa das línguas de gato, com a ajuda de um saco de pasteleiro. “São áreas diferentes, mas estão interligadas, de alguma forma. Quando cozinhamos, também estamos a produzir arte”, considera.
Há três anos, Olena Kravets partiu para fugir à guerra e não se imagina a regressar tão cedo, apesar de a filha ter voltado recentemente para viver com o pai. “Agora que tenho mais tempo para mim, decidi inscrever-me nesta formação porque adoro cozinhar. Na minha vida normal sou tatuadora, mas também gosto de me divertir na cozinha e este curso vai dar-me mais conhecimento sobre a culinária portuguesa. Estou muito focada em terminá-lo para saber como fazer o pastel de nata ou béchamel, por exemplo”, conta a ucraniana.
Uma nova profissão após a reforma
A cultura geral portuguesa é um dos módulos da parte teórica da formação, que inclui ainda um ciclo dedicado à comunicação e acolhimento e outro à aprendizagem de um idioma estrangeiro. Depois de parte prática, os formandos terão 160 horas de estágio nas empresas que aderiram ao projeto. Uma dinâmica que já é habitual na escola do Porto.
“Não mudou praticamente nada na nossa rotina porque é uma tradição desta escola, desde o início. Sempre tivemos alunos estrangeiros e, por isso, estamos habituados. O que tentamos fazer é acolhê-los da melhor forma, ter atenção às suas vidas pessoais e ajudá-los na sua integração”, explica Maria João Castilho, assessora de formação contínua, que assume ser “um gosto” participar no projeto.
Segundo Catarina Paiva, vogal do conselho diretivo do Turismo de Portugal, o programa desenvolvido em parceria com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e com a Confederação do Turismo de Portugal (CTO) nas 12 escolas de hotelaria foi desenhado para incluir não só competências técnicas, como para dotar os formandos de ferramentas para lidar com outros desafios, como a comunicação. “A população migrante é uma população com alguma vulnerabilidade. Sabemos que a integração profissional depende muito da sua integração social”, frisa a responsável, indicando que também as empresas que manifestaram interesse em acolher os estrangeiros terão formação para aprender a integrá-los.
Entre os mais de 5300 inscritos de 75 nacionalidades, mais de metade oriundos do Brasil, Eduardo Pereira foi um dos 1299 selecionados. Com 60 anos, há muito que o brasileiro tinha o objetivo traçado: passar a reforma em Portugal e dedicar-se a uma segunda atividade. “Estou a aprender tudo. Em primeiro lugar, estou a viver a cultura portuguesa, essa já é a primeira aprendizagem. Em segundo lugar, a escola foi uma grande surpresa”, conta.
Depois de uma vida dedicada a ser mestre cervejeiro, Eduardo teve conhecimento da formação através de um canal de YouTube dedicado às notícias de interesse para a comunidade brasileira em Portugal e candidatou-se a uma vaga para a área de bar e restaurante, pela qual se fascinou. “Estou a aproveitar cada segundo”.
“É uma excelente oportunidade porque permite que estas pessoas possam abraçar uma carreira num setor com imenso potencial e com imensas oportunidades”, indica Catarina Paiva. A dirigente do Turismo de Portugal explica que além da integração dos imigrantes, a formação de três meses pretende fazer face à necessidade de recursos humanos no setor, em grandes grupos hoteleiros ou empresas mais familiares, em todo o território.
O programa previa a formação de mil imigrantes, mas devido à adesão “bastante expressiva” dos empregadores, foram abertas 1299 vagas de estágio, com o objetivo de se tornarem em postos de trabalho efetivos. “Esta medida também nos ajuda a nós, enquanto sociedade, a posicionar Portugal como um destino de excelência para integrar estas populações”, defende a responsável. Para o futuro, é previsível que a medida “possa ser escalável e ter novas edições”, num país que soma, segundo a AIMA, com cerca de 1,5 milhões de imigrantes.
Origem
O programa de formação do Turismo de Portugal, desenvolvido em parceria com a AIMA e com a CTP, faz parte de um conjunto de 60 medidas, anunciadas no ano passado pelo Governo, no âmbito do programa “Acelerar a Economia”.
Investimento
O programa representa um investimento de 2,5 milhões de euros do Turismo de Portugal e consiste em 360 horas de formação numa das 12 escolas de hotelaria e turismo e um mês de estágio numa das empresas participantes, a começar a 1 de junho.
Requisitos
São elegíveis os estrangeiros maiores de idade, legalizados, com a situação fiscal regularizada, que tenham residência habitual em Portugal e que tenham alguma capacidade de comunicação em português ou inglês.
Benefícios
Durante os três meses de formação, os participantes recebem um valor mensal equivalente ao Indexante dos Apoios Sociais (IAS), alimentação e subsídio de transporte. As empresas são obrigadas a pagar, no mínimo, o valor equivalente ao IAS no mês de estágio, subsídio de alimentação e transporte (ou alternativas) e alojamento sempre que necessário.
Inscritos
O programa contou com 5378 candidatos de 75 nacionalidades, 50,4% oriundos do Brasil. Na lista de países segue-se Angola, Índia, Nepal ou Paquistão. Lisboa (1821), Porto (931) e Setúbal (567) foram os distritos com maior procura. A maioria dos inscritos foram mulheres entre os 25 e os 34 anos.
Formandos
O programa contou com a inscrição de 329 empresas, responsáveis por 1299 vagas. Os candidatos admitidos foram distribuídos pelas diferentes áreas do setor, com maior destaque para a hotelaria (802 vagas) e o restaurante/bar (284).