O Governo criou uma exceção para evitar pagar compensação a concessionárias das estradas que a pandemia deixou sem trânsito. Advogados deixam aviso.
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Inconstitucional, injustificado e revelador de má-fé. É assim que os advogados veem a suspensão da obrigação de indemnizar as concessionárias de autoestradas pelas perdas com a brutal quebra no tráfego, decretada pelo Governo para o período de 3 de abril a 3 de maio. Marcelo promulgou o diploma e já neste sábado foi publicado em Diário da República. Mas o assunto está longe de encerrado, antecipando-se uma batalha legal prolongada se o Governo não negociar compensações adequadas, nos termos dos contratos das parcerias público-privadas (PPP) rodoviárias. "Regras estabelecidas não podem ser esquecidas ou ignoradas no exato momento em que deviam produzir efeitos", considera um advogado contactado pelo JN/Dinheiro Vivo.
"Este diploma legal representa um incumprimento inconfessado dos contratos: o incumprimento das cláusulas de força maior e das consequências deste tipo de ocorrências (a compensação adequada e negociada), sob o pretexto de um estado de emergência e de um subsequente estado de calamidade pública", sublinha Pedro Melo, sócio da Miranda e Associados.
Com o confinamento obrigatório a provocar quebras de 80% no trânsito, as perdas das concessionárias são avultadas. E não por razões atribuíveis à gestão mas por algo imprevisível: a pandemia de covid-19. Uma situação que se enquadra perfeitamente nas cláusulas contratuais das concessões que preveem compensações às empresas quando haja quebra significativa de tráfego por motivos de força maior.
"Num caso de força maior, pode haver direito a reequilíbrio financeiro", explica o advogado, adiantando que esse exame é feito caso a caso, uma vez que também tem de haver "um desequilíbrio contratual efetivo", determinado, por exemplo, em função dos rácios previstos no "caso base" do contrato de concessão.
Há diferentes modalidades de compensação, incluindo pagamento em dinheiro de uma indemnização, a extensão do prazo do contrato e a revisão de tarifas das portagens. Mas o diploma do Governo reduz essas hipóteses a uma única: as concessionárias rodoviárias só poderão, a partir de 4 de maio, ativar o direito a ver prolongado o prazo da concessão.
O Governo quis "evitar desembolsar somas avultadas ou rever o tarifário pago pelos utentes, que poderia ter custos sociais e políticos", entende Pedro Melo, que tem como clientes várias concessionárias e rejeita a imposição de uma solução quando se podia negociar um acordo, uma "solução mais equilibrada". E que sublinha que a intervenção unilateral do Governo, com suspensão de cláusulas contratuais, vai ser contestada em tribunal. "Vivemos num Estado de direito, há que respeitar contratos. O Estado tem de atuar com boa fé contratual. Isto está previsto constitucionalmente."
Em detalhe
Eventos imprevistos
Em geral, os contratos deste tipo têm cláusulas abertas que preveem compensações caso ocorram eventos "imprevisíveis e irresistíveis". Ou seja, não determinam especificamente os casos em que podem ser ativadas essas compensações, antes dão exemplos do que podem configurar - incluindo sismos, inundações ou incêndios, mas também outro tipo de eventos como tumultos, guerras civis ou até greves gerais. E no caso das PPP rodoviárias, também incluem epidemias.
Um "sinal errado"
Juristas lembram que alterar as regras a meio do jogo e esquecer acordos pode ter efeitos graves também a longo prazo, já que dá um sinal errado aos investidores, num momento em que devíamos, mais do que nunca, dar sinais positivos. "Este tipo de medidas legislativas é próprio de Estados que têm risco político - e, consequentemente, muitas dificuldades em captar investimentos."
Encargos para o Estado
O Orçamento do Estado para 2020 previa que os encargos com as PPP - que incluem, além das rodoviárias, outras áreas, que vão da ferrovia aos hospitais - fossem de 1603 milhões de euros (há também receitas para o Estado, claro). Na saúde - e nas estradas, se afinal houver negociação - esse valor deverá crescer por efeito da pandemia.