Geração duplamente penalizada: sofreu com a troika e agora é atingida novamente com o desemprego provocado pela pandemia.
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A covid-19 entrou de rompante na vida de muitos, mas para Amélia (nome fictício), de 27 anos, desde fevereiro que se avizinhavam mudanças no local de trabalho. É trabalhadora independente: faz ilustrações e colaborava amiúde em duas instituições de cultura do Porto, Serralves e Casa da Música. Faz parte de uma geração jovem duplamente penalizada, porque ainda sofreu a última crise e já se vê mergulhada noutra.
Em mais de 47 mil novos beneficiários acumulados entre fevereiro e maio, os jovens respondem por 46% da subida. Em maio, o número de beneficiários superou os 225 mil, num máximo de mais de três anos.
"Estávamos a receber sucessivos cancelamentos de atividades", explica Amélia. Os tempos não têm sido fáceis: além de integrar um dos setores mais afetados pela crise, a cultura, entra nas estatísticas dos jovens adultos que perderam rendimentos durante a pandemia.
"No mercado de trabalho há grupos mais frágeis, onde se incluem os jovens", afirma Aurora Teixeira, professora da Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP). As razões para esta vulnerabilidade são explicadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que avança que um em cada seis jovens no mundo ficou sem emprego nos últimos meses devido à pandemia.
1 em 3 pessoas com idades entre os 26 e os 45 anos diz sentir-se ansioso/agitado todos os dias ou quase todos os dias, segundo um barómetro da covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública.
A geração mais nova é mais afetada pelas recessões (menos experiência, mais dispensáveis), tem contratos precários e temporários e trabalha em setores fortemente atingidos pela covid-19, como o turismo ou os serviços, "não há teletrabalho que safe", esclarece a professora universitária.
É difícil prever cenários a longo prazo, quando pairam tantas incertezas. Para Aurora Teixeira, a hipótese mais provável é que a geração entre os 25 e os 34 anos seja "duplamente penalizada" após a crise de 2008 e agora com a de 2020. "Os jovens estavam a recuperar e havia uma onda de otimismo, mas os projetos de vida vão ser adiados", vaticina.>
Propostas que não se fazem
Quando se candidatou à Faculdade de Belas Artes, no Porto, Amélia soube que vencer no mundo da cultura não seria fácil. Na altura, Portugal estava sob intervenção da troika e ainda lutava contra os efeitos da crise económica de 2008. "Tenho medo que haja novamente uma desvalorização do trabalho intelectual e artístico. Vejo propostas de valores que fazem aos artistas, que eu nunca faria a ninguém", diz ao JN. Amélia tem respondido a encomendas de ilustrações, mas estas também têm sido escassas.
A jovem recebe um apoio da Segurança Social de 438 euros para trabalhadores independentes. "Consigo suportar porque divido casa, mas entendo que, para uma pessoa com família, seja muito difícil."Em pleno surto, a vida parece estar suspensa.
Será exagerado pensar que nem todas as faixas etárias vão sofrer com a crise. Para o sociólogo Carvalho da Silva, a pandemia foi simétrica numa primeira fase, mas apenas no "susto". "Os trabalhadores precários (a maioria são jovens) foram automaticamente despachados", afirma. As consequências podem ser várias, segundo o investigador universitário: redução dos tetos salariais, atraso no desenvolvimento económico do país e até conflitos intergeracionais. "Se há uma geração de jovens que se sente abandonada, devíamos estar atentos."
A covid-19 veio trazer a certeza de que deveria fechar a loja
Veste roupas coloridas e alegres e gosta de conversar com os clientes. Tinha um sonho que resumia estas duas características, a "Miss Power". Ângela Carvalho, de 37 anos, faz parte de uma geração que emigrou antes da crise de 2008, e que regressou para concretizar ambições pessoais e profissionais. "Emigrei para Espanha em 2007, porque já não conseguia arranjar trabalho em Portugal na minha área". Tinha 24 anos.
Voltou 11 anos depois para abrir uma loja de roupa que combinava com a sua personalidade. A "Miss Power" abriu em agosto de 2018 na Rua do Rosário, no Porto. A pandemia confirmou que o negócio já não voava de vento em popa e que era necessário fechar as portas. "A covid-19 veio trazer mais um pouco de insegurança e a certeza de que deveria fechar. A loja não estava localizada numa zona central e era muito difícil que as pessoas chegassem até ali", explica.
Ângela fechou a loja - sem saber se definitivamente - dias antes da declaração do primeiro estado de emergência, a 19 de março. Já não se sentia segura, ouvia notícias dos amigos espanhóis e antecipava que o mesmo mal chegasse a Portugal. Muitos dos comerciantes na Rua do Rosário, já ponderavam fechar também. "Foi o caos total, as vendas online caíram imenso, as pessoas queriam o reembolso do dinheiro, o que é compreensível porque estavam assustadas", recorda.
Foco no digital
No regresso gradual à normalidade, Ângela percebeu que dificilmente conseguiria fazer face às despesas da "Miss Power". O preço da renda era alto e juntavam-se as contas da água, luz e internet. "A única opção era não pagar renda dos dois meses [em que esteve fechada], mas depois ter de pagar esse valor em prestações à senhoria. Era como se fosse um empréstimo, mas eu não queria ir por esse caminho."
Com uma presença forte nas redes sociais - mais de 16 mil seguidores no Instagram -, a proprietária da "Miss Power" decidiu virar esforços para o mundo digital. "Há muito potencial na Internet. Estou a tentar melhorar o site e no futuro, quem sabe, se as rendas baixarem, talvez possa voltar a ter uma loja física."
Para já, Ângela quer apostar em mercados do Porto para divulgar o seu negócio e garantir que mulheres de todo o mundo voltem a comprar vestidos coloridos, a partir de um computador. Sejam do Algarve ou de Barcelona.
Colocou-se os pontos no i"s nos problemas da cultura
Após várias semanas confinada em Lisboa, Mariana Sousa, de 26 anos, sabia que já não fazia sentido continuar na capital, com tudo parado. Especialmente, no setor cultural e artístico. A cantora lírica mudou-se de Gaia, em outubro do ano passado, para sentir o pulso da única cidade portuguesa que tem um teatro de ópera, a "área em que tem mais interesse" em singrar. Esteve meio ano em Lisboa. No início de maio, voltou para a casa dos pais. Teve quatro concertos cancelados, um em São Miguel, Açores, com viagem já paga.
"Claro que estando no início da minha carreira, não é possível viver só disto", esclarece a jovem. Teve um part-time fora da área cultural e deu aulas durante algum tempo. No entanto, a estabilidade é uma raridade num setor onde muitos tentam ter um lugar só seu. Mariana tem uma "vida de nómada". "Mesmo a morar em Lisboa, cheguei a fazer concertos no Norte", acrescenta.
Sem trabalho certo antes da pandemia, o novo normal veio piorar tudo. Mas há lições a tirar para o futuro. "Além dos pagamentos em Portugal [a artistas] não serem muito altos, são feitos com atraso. Já cheguei a estar quase um ano à espera de um valor", conta. "A pandemia veio destabilizar muita coisa, mas colocou-se os pontos nos i"s nos problemas da cultura", esclarece Mariana, referindo-se aos movimentos solidários que apoiam agora artistas com dificuldades económicas em todo o país.
A jovem conta agora com apoio familiar, porém, a realidade não é tão suave para profissionais com famílias para sustentar. Por outro lado, embora a covid-19 tenha impactado um setor inteiro, artistas com contratos sentiram de forma menos gravosa a paragem da cultura.
Parar no início da carreira
"Acho que, neste momento, só vemos a ponta do iceberg. Para quem é jovem e está a começar uma carreira, meses e meses sem rendimento, torna-se muito complicado", diz a cantora lírica.
Apesar dos tempos que se auguram negros, Mariana Sousa não põe de parte um regresso a Lisboa. Quer continuar na engrenagem que a levará até trabalhos na ópera. "O confinamento veio demonstrar que há criatividade acumulada, que ninguém imaginava, e que os jovens estão todos no mesmo barco."Até lá, a pausa da jovem cantora lírica é forçada, mas sempre com um regresso anunciado.