As mulheres. Os sapatos. O texto devia acabar aqui. Está tudo dito. Ou quase. Façamos então um esforço lúdico para trazer ao leitor as evidências.
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Recomeçando: Luís Onofre produz sapatos apenas para mulheres como se fosse um pintor de obras de arte. Imagine-se a cena: um estirador de desenho, uma folha em branco e Luís, sentado a desenhar linhas orientadas por um certo "swing": a procura de objetos arrebatadores capazes de fazer perder a noção sobre o valor a pagar. Quanto custa uma mulher feliz? E bela (apenas um pouco mais bela por causa dos sapatos)? Não tem preço. É isso.
Daí para a frente é juntar o puzzle de 5 mil componentes por coleção para transformar isto em exportação para 40 países, contentores cheios de caixas de sapatos montadas manualmente, estilizadas para seduzir só por se poderem abrir - as caixas onde os sapatinhos repousam, queridos, como se estivessem no mundo secreto de Alice. O armário dos sapatos! Cheio de caixinhas bonitas... E depois, lá vão elas e eles (os sapatos), muitos milhares de quilómetros, antecipados por bons argumentos comunicados aos distribuidores, tudo para fazer frente a um estado de necessidade global: permitir que milhares de mulheres por todo o mundo calcem português. Onofre. Com o brasão das
Quinas cunhado na sola.
Um sinal da crise em Portugal? 95% dos sapatos produzidos por Onofre são vendidos para o estrangeiro. Da próxima vez deveríamos exigir no Memorando da Troika um par de sapatos nacionais e bonitos para cada portuguesa por ano. Um vale de desconto. Conhece alguma mulher que viva feliz sem um belo par de sapatos? É impossível. As farmácias deviam tê-los ao lados dos antidepressivos e serem passados com receita médica, pagos em suaves prestações e com comparticipação do Ministério da Saúde. E a recuperação da economia seria mais fácil.
Sempre que uns sapatos bonitos saem à rua nos pés de uma mulher, passamos a estar no plano da arte sacra, mas fora da igreja. É couro puro, pode haver joias - normalmente swarovskis, para não serem descalçadas em plena rua por um louco atraído pela fortuna e beleza . Misture-se na receita tacões e atitude. As espanholas gostam deles baixos, as portuguesas altos. "Para a Rússia são extremamente altos". Na Holanda e Alemanha mandam os sapatos práticos. A França tem um pouco de tudo, tal como a China.
E se passarmos para o perigoso mundo das botas? Daquelas de cano alto e audácia arquitetónica até aos joelhos? Aí deparamo-nos com um plano ardiloso capaz de tornar umas pernas femininas numa conspiração distrativa de quem segue meditativo com os seus botões a pensar na última projeção macroeconómica que anuncia o fim do mundo. Adeus recessão.
A avó já fazia sapatos...
Só que Onofre leva o exercício de criar sapatos à suprema maldade intitulada "sandálias", daquelas que bordejam o pé ou o início da perna com pequenas joias, suaves tiras, e tudo o resto é apenas pé, que assenta sobre uma camada de pele genuína e ali fica em suave repouso enquanto os cinco dedos, o peito e o tornozelo olham para nós como se não houvesse amanhã. 55% das vendas de Onofre são estes "efeitos especiais" sobre a lucidez.
O estilista começou em 1993 e tinha uma vantagem no ADN: a avó fazia sapatos para senhora desde 1939 e o pai havia estado ligado à produção de sapatos para as casas Cacharel e Kenzo. O miúdo Onofre tem hoje apenas 41 anos, mas quando era mais novo viveu rodeado deste mundo repleto de sonhos e sapatos. E agora ei-lo aí pelo mundo, com a bagagem de quem sabe o que custou entrar em Espanha, em França, na Alemanha, par a par, coleção a coleção...
A decisão de internacionalizar uma produção feita numa empresa que produz séries limitadas - de cem a mil pares - exige uma crença forte: vender mais caro para pagar a aventura. E começou motivada pela crise. A primeira Guerra do Golfo gerou o primeiro trambolhão da economia portuguesa pós-CEE e os Onofres puseram-se a caminho. Moda Calçado, em Espanha, em 1996, depois o certameº mais importante no mundo, a Micam, em Milão, a seguir outros países da Europa, desde a Grécia à Rússia, passando por desfiles lá fora e cá dentro. A expansão intercontinental fez-se aos poucos e vai hoje do Brasil à Mongólia.
A chegada à China, por exemplo, aconteceu em 2007, quando Luís foi na comitiva de empresários que acompanhou Sócrates e Manuel Pinho pelo Oriente. "Para se conseguir vender lá, temos realmente de ser muito bons e diferentes". Note-se que a China já não é o que era: compra perto de 90% da pele de qualidade do mundo. Muita produção de grandes marcas foi deslocalizada para lá. Onofre ainda não tem escala para fazer o mesmo. Resultado: tem de ter diferença suficiente para combater os direitos aduaneiros que em alguns casos chegam a estar próximos dos 100 por cento e oneram brutalmente a compra da sua coleção.
De mercado em mercado, a parada de exigência e criação e valor tem subido. E é por isso que vemos hoje, pelo mundo, o calçado português a ser número 2 em valor, só ultrapassado pelo italiano. Claro, estas coisas têm o outro lado da moeda: sim, quanto custam: Quanto custam!? Segundo Luís, é possível encontrar a sua marca por valores que começam nos 180 euros e podem atingir os 1500 nas botas. É para classes altas, ou talvez não. É das tais coisas: difícil é começar - como o primeiro beijo. Ou os primeiros Onofre.