Pandemia acabou e a produção de máscaras também, mas ficaram feridas abertas na indústria
Há máquinas paradas que nem sequer podem ser vendidas; há apoios públicos que ainda não chegaram; já há processos em tribunal; e caiu por terra o sonho de a Europa se tornar independente da Ásia para este tipo de produto.
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Foi só a 5 de maio de 2023 que a OMS decretou o fim pandemia de covid-19 como emergência sanitária global, deixando para trás 1150 dias de combate a uma doença responsável por sete milhões de mortes em todo o mundo, mas há já, pelo menos, um ano que, em Portugal, as restrições eram quase nenhumas. Pelo caminho ficaram os muitos milhões investidos para produzir equipamentos de proteção: as fábricas fecharam, os equipamentos estão para desmantelar e o sonho de tornar a Europa independente da Ásia na produção deste tipo de produtos morreu.
Quanto se investiu em Portugal para fabricar máscaras e outros equipamentos de proteção individual não é uma informação fácil de obter. Questionada, a Autoridade de Gestão do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (Compete 2020) avança, apenas, com os valores totais dos projetos por medida no âmbito das iniciativas de apoio na pandemia. Assim, no aviso N.º 14/SI/2020 de Inovação Produtiva Covid-19, foram aprovados 37 projetos, com um valor global de investimento associado de 48,5 milhões de euros, e no aviso N.º 17/SI/2020 de Inovação Produtiva Covid-19, foram apoiados mais 97, correspondentes a 110,9 milhões de investimento.
O valor total dos apoios, refere a mesma fonte, foi de 102 milhões, dos quais 95,5 milhões foram já pagos. Destes 134 projetos aprovados, só estão, para já, 91 encerrados, e a percentagem de incumpridores e dos que terão de devolver os apoios recebidos não é avançada, dado que "ainda há um número significativo de projetos em fase de encerramento".
Mas o DN/Dinheiro Vivo sabe que a pressão para encerrar estes projetos de investimento tem sido grande, que as divergências se amontoam e que há já vários empresários em tribunal ou a ameaçar recorrer à via judicial para receber os apoios em falta ou contestar a exigência do Estado de devolução de dinheiros públicos.
Uma pesquisa rápida na listagem Portugal 2020 com referência ao fabrico de dispositivos médicos, de inovação produtiva para o desenvolvimento de máscaras ou para reconversões fabris para materiais destinados a combater a pandemia mostra que foram aprovados mais de 200 projetos relacionados com estas temáticas e com apoios de mais de 80 milhões de euros.
Mas há que ter em conta o contexto em que tudo isto aconteceu. Estávamos no início da pandemia, a China estava fechada, a Europa estava confinada e não havia onde arranjar ventiladores ou equipamentos de proteção individual. A acrescer a isso, milhares de empresas fechadas, sem saber como manter os operários, e para a têxtil e vestuário, o desenvolvimento de máscaras de proteção, em especial das sociais, para uso generalizado da população, foi a tábua de salvação para muitas fábricas.
Foram-se as máscaras...
À medida que a pandemia foi abrandando, com a chegada das vacinas, e a vida retomando a normalidade, também as fábricas voltaram a produzir tecidos, roupas, tudo aquilo que era a sua atividade anterior. As máscaras foram esquecidas, mas as máquinas ficaram lá. Agora é preciso perceber o que lhes fazer. "Na altura, não houve tempo para mais nada a não ser adaptar o que já existia no mercado para conseguirmos redirecionar a produção para máscaras e assim encontrarmos uma solução de sobrevivência para a empresa", explica o responsável da Lagofra, uma das primeiras unidades a ter máscaras certificadas no mercado.
Durante meses foi quase a única fonte de receita da empresa. À medida que as encomendas de vestuário começaram a chegar, o negócio foi ficando de parte. Há meio ano, pararam de as produzir. Mas o projeto de investimento ainda não está encerrado. "Estamos ainda à espera do pagamento da última tranche. Durante dois anos houve silêncio, agora há uma grande pressão para encerrar o projeto", diz Filipe Prata. Quanto às máquinas, estão paradas. "Estão ali limpinhas, e arrumadinhas, porque não as podemos vender enquanto não estiver tudo fechado. Depois, vamos ver se as conseguimos adaptar para outra coisa", frisa.
Pedro Pestana, da Basic Stuffs - Gestão de Equipamentos Médicos, quis aproveitar a experiência de três décadas no setor da saúde para instalar duas linhas de produção de máscaras cirúrgicas em Caxias, num investimento aprovado de 564 mil euros. Hoje, estão desativadas. "Sinceramente, foi o pior negócio que eu fiz na minha vida. Roubou-me muitas horas, gerou-me muita preocupação, foi tudo muito, muito mau", diz o empresário, que lamenta a incapacidade da Europa de salvaguardar os investimentos que fez e que apoiou.
"Consegue-se hoje uma caixa de máscaras cirúrgicas, da China, a um euro e pico, quando, produzi-las cá, só a eletricidade supera esse valor", diz. Este é um dos empresários que acusa o Estado de agora "andar a tentar retirar os subsídios que deu, à pressa, atabalhoadamente", levantando problemas "de pormenor" como a data exata de uma fatura. Ameaça recorrer a tribunal. Quanto às máquinas, admite vir a tentar vender alguns dos componentes de modo a recuperar algum dinheiro. "Estamos a falar de máquinas que custaram 200 mil euros cada uma e que se eu conseguir cinco mil por elas já tenho sorte", frisa.
A OH Máscaras está também em litígio com o Estado. A fábrica, criada de raiz, em maio de 2020, em Oliveira do Hospital, chegou a laborar em três turnos e a criar 27 empregos. Fechou em julho de 2022, tendo matéria-prima em stock para dois milhões de máscaras e mais meio milhão de máscaras cirúrgicas tipo IIR, que oferecem proteção contra salpicos, por vender. "Não houve qualquer possibilidade de continuar a laborar face à concorrência da China. O objetivo do projeto era tornarmo-nos independentes e evitar situações de rotura como as que se viveram no início da pandemia, mas a Europa tem memória curta. Não aprendemos nada, a nossa dependência da China voltou a ser total e completa", acusa Carlos Alexandre Brito.
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