Cerca de 30% dos trabalhadores e 22% das empresas estão no distrito de Lisboa. Economistas explicam e criticam a falsa descentralização. Diferença salarial aumentou em 10 anos. Capital paga mais 335 euros que o Porto, 534 que Braga e 643 que Bragança.
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Os discursos políticos de “descentralização” e “coesão territorial” não batem certo com a realidade dos números. Os últimos dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social revelam que cada vez mais “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Entre 2013 e 2023, a distância entre a capital e os restantes distritos aumentou no salário, no número de trabalhadores e de empresas.
Em Lisboa, a “remuneração média mensal ganha” (valor ilíquido que inclui, para além do salário-base, os subsídios, prémios e horas suplementares) em 2023 era de 1779,40 euros, mais 313 euros que a média nacional (1466,70), 335 euros acima do distrito do Porto, mais 431 que Aveiro, 534 relativamente a Braga e 643 comparativamente com Bragança e 603 face à Guarda, os dois distritos onde se ganha menos. Em 2003, Lisboa “pagava” mais 305 que a média nacional (ver infografia).
“É o sintoma mais evidente da persistência de um modelo de desenvolvimento desequilibrado, que favorece a metrópole e marginaliza vastas áreas do interior e do Norte/Centro, confirmando uma estagnação estrutural da geografia económica do país”, diz ao JN Óscar Afonso, diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
“Facilita o lobbying”
Para o economista João Cerejeira, professor da Universidade do Minho, esta desigualdade salarial entre distritos deve-se ao facto de, em Lisboa, “a população empregada ter um nível mais elevado de escolaridade” e de aí estarem “concentradas as sedes das grandes empresas nacionais, multinacionais e administração pública de topo, onde se empregam os quadros dirigentes com salários mais elevados”, nomeadamente em setores como a “energia, telecomunicações, transportes e digital, que têm remunerações médias mais altas”.
Os dados do GEP indicam, também, que Lisboa tinha, em 2023, 30% do emprego nacional, com quase um milhão (994.831) de trabalhadores num total nacional de 3.296.134. Em 2013 tinha 29% da mão de obra.
Dez anos depois, o distrito do Porto continua a ter 19% (638.591). Seguem-se Braga e Aveiro. Portalegre não chegava aos 23 mil trabalhadores por conta de outrem em 2023 (ver infografia).
“Reflete a concentração na capital das sedes das principais empresas, para a qual em muito contribui a forte centralização do poder político em Lisboa. A localização das sedes em Lisboa facilita a prática de lobbying (atividade de influenciar decisões de órgãos públicos) – que é legal, mas carece de regulamentação para maior transparência, como sucede noutros países – e de acesso a serviços públicos para lidar com a carga burocrática excessiva, havendo ainda muitos assuntos que só se conseguem tratar em Lisboa”, comenta Óscar Afonso.
O economista Eugénio Rosa lamenta que “apesar de todas as bonitas palavras dos sucessivos governos, visando a coesão nacional por meio de um desenvolvimento equilibrado de todo o país, isso nunca se verificou”.
Distribuição das empresas
O peso do distrito de Lisboa também aumentou no número de empresas, passando de 22,2% em 2013 para 22,6% em 2023. Na capital moram 65.753 das 291 252 empresas do continente. O Porto tem 54.733, segue-se Braga (29.159), Aveiro (19.949), Faro (18.237) e Setúbal (16.783). Depois aparece Leiria (16.175), Santarém (11.869), Coimbra (10.326) e Viseu (10.267). No fundo da lista vêm Portalegre (2865), Bragança (3729), Guarda (4169) e Castelo Branco (4717).
Esta concentração explica-se pelos “ganhos de produtividade associados à aglomeração da atividade produtiva”, diz João Cerejeira. “Lisboa é a principal área urbana do país, beneficiando da proximidade e maior densidade de empresas e capital humano, as quais permitem ganhos de escala, maior facilidade na difusão de conhecimento, criando condições mais favoráveis à inovação. A existência do principal aeroporto do país também facilita a conexão a nível global, com vantagens para as empresas aí instaladas”, aponta o economista.
Investimento desigual
Óscar Afonso diz que é fruto da “desigualdade no investimento público e na atração de investimento privado, uma vez que as políticas de investimento público têm historicamente favorecido áreas já dinâmicas ou desenvolvidas, em particular Lisboa, ou têm sido mal aplicadas no interior, sem criar efeitos estruturantes”. Lamenta ainda a “falta de incentivos robustos à descentralização económica, visto que os regimes fiscais e os apoios ao investimento falham em criar vantagens competitivas reais para a instalação fora dessa área metropolitana”.
O investimento publico e muitos serviços públicos, acrescenta Eugénio Rosa, “estão ausentes de muitas regiões do interior do país, e quando o investidor privado o faz no interior é para pagar salários mais baixos, aproveitando não haver alternativas”
Como virar o “jogo”
Como se inverte este quadro? “Mais investimento público que crie as infraestruturas necessárias que depois arraste o investimento privado que crie mais emprego e mais riqueza”, resume Eugénio Rosa.
Neste âmbito, João Cerejeira destaca a necessidade de investir na conectividade do território, “nomeadamente na ferrovia, uma viagem entre Braga e Lisboa não deveria durar mais do que duas horas”, dá o exemplo. Outro é a aposta nos “centros produtores de conhecimento localizados fora da área de Lisboa”, refere o professor da Universidade do Minho.
João Cerejeira acrescenta que o país precisa que a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) tenha “uma política de atração de investimento estrangeiro que mostre as vantagens da escolha de localizações fora da região de Lisboa por parte dos investidores estrangeiros, nomeadamente investimentos de elevado valor acrescentado”.
Reforma administrativa
Para Óscar Afonso, é fundamental uma “reforma administrativa territorial, no âmbito da reforma do Estado, com reforço da capacidade de governação regional, acabando com o nível administrativo das freguesias, fundindo municípios, se necessário, e criando regiões administrativas no continente com capacidade técnica para coordenar planos de desenvolvimento integrados”.
Até que tal seja possível, defende o diretor da Faculdade de Economia, “deverá ser promovida uma maior transferência real de competências e meios para fora de Lisboa, nomeadamente para as CCDR e entidades intermunicipais, com autonomia orçamental e poder de decisão sobre fundos estruturais”.
Mais qualidade de vida com menos noutras cidades
O preço da habitação, os tempos de deslocação e o custo da vida urbana fazem, na opinião dos economistas ouvidos pelo JN, que o “ganhar mais” em Lisboa seja, em muitos casos, uma ilusão estatística, sem expressão prática no nível de vida, especialmente para os trabalhadores com rendimentos médios ou baixos. “Um trabalhador em cidades como Vila Real, Bragança, Viseu, Évora ou Leiria pode, com menor salário nominal, ter uma melhor capacidade de poupança e maior qualidade de vida”, afirma Óscar Afonso.